2007 (agosto) – O longo cruzeiro ferroviário – Parte I

Era meu presente de final de carreira.  Estaria totalmente aposentada, depois de alguns atrasos e adiamentos.  Tinha que ser em grande estilo.  A tendência por roteiros exóticos era meu pensamento permanente, conhecer gente diferente, lugares que os turistas brasileiros em geral não dão muita importância.  Tudo precisava ser uma experiência nova.  Nada melhor que uma longa viagem de trem por terras que não conhecia.

♣ O roteiro: Não lembro exatamente quando descobri e me encantei pela proposta de viagem de trem entre Beijing e Moscou.  Ferrovia Transiberiana – o nome dizia tudo.  Na realidade, faria um trecho por ferrovia chinesa, depois um ramo lateral na Mongólia e finalmente chegaria ao trajeto principal da Transiberiana quando entrasse na Sibéria.  Ainda seria verão.  Por causa de uma complicação na emissão do aéreo, resolvi ficar uns dias em Zurique, mais um presente meu para mim.  Acrescentei a linda São Petersburgo ao final.  Seriam 25 dias no total.

Quando decidi fazer o “Zarengold”, trem fretado por empresa alemã percorrendo parte da Ferrovia Transiberiana, já estava meio em cima da hora.  Europeus se planejam com muita antecedência, mais do que eu.  Entrei na fila esperando por desistências, e a vaga apareceu.  Faltou bilhete aéreo até Frankfurt, que conseguiria somente via São Paulo e Zurique e mesmo assim, só na classe executiva.  O trecho de Frankfurt até a China e a volta saindo de São Petersburgo não tinha problemas.  Não era uma ocasião nem uma viagem qualquer, era comemoração das boas, paguei.

Era a minha primeira viagem só usando câmaras digitais para fotos.  Lamentava abandonar minha companheira de tantos anos, mas agora tinha um equipamento mais leve, inclusive por causa dos muitos rolinhos de filme.  Não precisaria trocar lentes, era só usar o zoom.  Cartões de memória e baterias recarregáveis também ocupavam menos espaço.  Mas durante a viagem aconteceu uma perda irreparável por uma bobagem minha com um cartão de memória (mas não formatei o cartão não; aguarde).

A estada na Suíça era só em Zurique, onde cheguei numa quarta-feira de agosto, pleno verão, tarde de sol.   Não tinha transfer na chegada, sabia que a estação de trens era meio longe do hotel e não conhecia as distâncias até a cidade. Paguei por um serviço de transporte em micro ônibus, super eficiente, até a porta do hotel.  E já ficou pago e marcado para o dia do traslado de saída.

Depois de me alojar, fui aproveitar a tarde longa.  Matei o tempo fazendo um passeio de barco pelo rio Limmat e lago de Zurique.

S1 Centro de Zurich

No centro de Zurique junto do rio Limmat.

Para mim estava frio, mas tinha gente nadando, a água é limpa a ponto de permitir isso em pleno centro da cidade.  Passo seguinte, jantar uma fondue no centro antigo, com um vinho branco.

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Uma festa com banda e tudo em Niederdorffstrase, no centro antigo.

Já sabia de antemão quais passeios queria fazer e contratei no próprio hotel.  Um dia para subir o Jungfrau e outro para subir Monte Pilatus e visitar Lucerna.

O passeio a Jungfrau foi deslumbrante.  O caminho, a subida de trem, o cheiro do campo, o barulho dos sinos das vacas, a vista das montanhas e dos campos, é tudo delirante.

S2a Começando a subir

Começando a deliciosa subida até Jungfrau.

Achei uma delícia subir aqueles campos de montanha verdinhos, muitas vezes ouvindo o barulho dos guizos das vacas leiteiras.  Algumas até apareciam, era como se dessem as boas-vindas.

S2b Região do Kleine Scheidegg

Subindo por Kleine Scheidegg.

A uma certa altitude é preciso trocar para um trem com cremalheira e todo com janelas fechadas para enfrentar o frio que vem das geleiras.

S2c Parada para troca de trem em Lauterbrunnen

Parada para troca de trens em Lauterbrunnen.

Teve gente achando chato o trecho em que o trem sobe por dentro de um túnel escavado na rocha, sob a geleira.  É escuro, mas é uma obra incrível.  O trem faz uma ou duas paradas para desembarcar e ver a geleira ali bem perto, juntinho das aberturas naturais da rocha.  Lá no alto, a mais de 4000 metros de altitude, acima das nuvens, galerias com esculturas no gelo e um deleite para os olhos na paisagem em azul e branco.

S2d Mirante Sphinx

Mirante Sphinx no alto do Jungfrau.  Vento muito frio.

O movimento é muito e para comer qualquer coisa foi complicado.  E a comida é meio ruim.

A volta é por outro caminho, mas a paisagem da subida é quase delirante.  O passeio foi fantástico, recheado de coisas bonitas e interessantes.

De volta a Zurique, descobri os restaurantes da estação central de trens, muito conveniente, a cinco minutos do hotel.

No outro dia fui a Monte Pilatus, que não achei tão impactante.

S3a Monte Pilatus

No amplo mirante de Pilatus.

Claro que há belas vistas do alto dos mais de 2000 metros, flores delicadas que de tão teimosas aparecem nas fendas das rochas.

S3b Flores em M Pilatus

Flores na fenda da rocha brotando em Pilatus.

Subida por um lado da montanha de teleférico e descida pelo outro de trenzinho tipo plano inclinado, que termina junto do píer do lago.

S3c Descida em Alpnachstad

A descida de Pilatus em Alpnachstad.

Dali seguiria um passeio pelo lago Luzern, até a cidade do mesmo nome.  E junto do píer estava calmamente reunida uma família de cisnes brancos, filhotes já grandes porém ainda com a plumagem escura.

S3d Casal de cisnes e filhotes

Os orgulhosos pais de cinco robustos filhotes.

Foi usado um barco de transporte urbano que faz a ligação entre as vilas da orla, parando em algumas delas até finalizar em Lucerna, bem de frente para a Ponte da Capela.

O tempo de visita ali seria pouco.  Teria que me concentrar no lugares mais próximos.  E tentar comer alguma coisa.

S3e Chegando a Luzern pelos lagos

Chegando de barco a Lucerna.

Fiquei pela Ponte da Capela, construída em 1333 sobre o rio Reuss, quase chegando à foz no lago, foi pintada com temas católicos no século XVII, quando a Reforma se impunha na Suíça.  Eram mais de cem painéis triangulares acompanhando a forma do telhado.  Junto da ponte, a Torre da Água.

S3f Luzern Ponte da Capela

A Torre da água e a Ponte da Capela.

Eu tinha visto esta ponte antes do incêndio de 1993, e agora ia ver sua versão restaurada e partes reconstruídas.  A ponte e as pinturas foram refeitas.  Como lembrete, alguns trechos foram deixados com as marcas do incêndio.

S3g Interior da Ponte da Capela 2

O interior da restaurada Ponte da Capela.

Na volta, mais uma vez fui aos restaurantes da estação de trens.

Ainda tinha a manhã livre e fui até a estação de trens aproveitar para comprar dermo-cosméticos na “Apotheke”.  Estavam montando uma feira de queijos no grande saguão da estação.  A gulodice deu cambalhotas, mas só inaugurava no fim do dia, sem possibilidades de esperar.

Embarquei para a China, via Frankfurt e no desembarque em Beijing fiquei procurando por alguém com meu nome num papel.  Ninguém.  Rodando para lá e para cá, percebi que havia um grupo de alemães para o mesmo trem, e já se reuniam com seu guia debaixo da bandeirola com a cor do seu grupo.  O guia chinês não falava inglês.  Uma passageira serviu de intérprete, expliquei o caso, mostrei meus documentos da viagem e acabei indo para o hotel junto com eles.  Pedi ao rapaz que informasse à agência sobre a minha chegada, e ficou tudo acertado.  Ainda bem, tudo na China tem tanta gente que pode ficar confuso.

No hotel a minha reserva estava correta, não tive nenhum problema no check in.  Mais tarde descobri que a minha data de chegada constava na documentação deles como sendo para o dia seguinte, como o restante dos brasileiros.  Sempre preocupada em não perder inícios de viagens nem conexões, eu estava chegando a Beijing um dia antes do necessário, como muitos passageiros fizeram.  Nunca soube de onde partiu o erro.  E entendi menos ainda o hotel estar certo.

Chovia em Beijing, mas não dava para perder tempo.  Dormi um pouco e fui para o balcão do hotel procurar um passeio que não constasse da programação de visitas já incluída.  Descobri um que levava aos bairros antigos com suas vielas e à Torre do Tambor.

Seria só eu a fazer o passeio e teria uma guia jovem e simpática, disposta a ser boa anfitriã.  Fui levada para uma parte antiga da cidade, que agora estava toda arrumada, cuidada e pronta para ser visitada.  Era a face maquiada da antiga Beijing, de residências pequenas e serviços coletivos. Imagino que tenham sido partes como esta que meus pais conheceram lá pelos anos 1970, já sendo demolidas para erguer o que se vê hoje.  Eram pessoas especiais que viviam por ali.   Senhores idosos jogando Majong, senhorinhas se escondendo da chuva fininha.

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Um jardim de uma casa no “hutong”.

Não posso imaginar como seriam esses “hutongs” quando eram realmente ocupados, quando eram o dia a dia da cidade.  Agora era simpático, limpo, tranquilo.  Já na saída, encontramos uma família com várias crianças, que me olhavam curiosas.  A guia foi quem organizou a foto.  Ficaram felizes dando aquela risadinha chinesa quando viram o resultado no visor da minha nova câmara digital.  O equipamento tinha seu lado bom.

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Rindo com a garotada.

A entrada da Torre é por uma loja com irresistíveis chás, incensos e enfeites de seda.  Lá no alto, os imensos tambores já não são importantes, não marcam mais os tempos na vida das pessoas.  Foram até proibidos de tocar à noite, com a alegação de que o barulho é intenso e vai muito longe.  Só que na sua origem, era essa a sua finalidade.  Ainda cheguei a tempo de ver uma rápida demonstração que fazem à tarde, o som é poderoso.

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O Templo do Tambor.

Fui jantar perto do hotel.  Com a confusão no aeroporto, não tinha trocado dinheiro e levei dólares para pagar.  Avisei que não tinha RMB, o nome que eles agora usam para o Yuan; a resposta foi que não havia problemas.  Depois da comida saborosa, um frango com molho de frutas, me informaram que o estabelecimento não aceitava moeda estrangeira, mas que no fundo da loja havia uma casa de câmbio.  Não entendi a lógica, mas troquei e paguei.

Já ia dormir quando o telefone tocou.  Era o guia local me avisando que parte do grupo em língua inglesa teve problemas com os voos.  Assim, o passeio da tarde do dia seguinte seria feito adiante, sem nenhuma perda.  Os que já tinham chegado, teriam o dia livre até o encontro de todos para o jantar no hotel.  Então o jeito era descobrir o que fazer.

Amanheci pensando em pandas, em ir ao zoológico.  Quando estava saindo encontrei duas brasileiras que chegavam.  Dei um olá, trocamos algumas palavras e uma delas quis ir ao zoo comigo.

Fomos de táxi e nesta saída, conheci o sistema de cartões escritos em inglês e em ideogramas.  De um lado é o cartão do hotel, bilíngue.  Do outro são os principais pontos turísticos, onde se marca a qual quer ir.  Tudo nos dois idiomas.  Para voltar, mostra o lado do hotel.  Ao final da corrida o taxímetro imprime o tíquete com o valor a pagar.  Os números são os mesmos nossos.

O lugar não é fantástico, mas vimos os pandas e mais algumas espécies da região.  Os pandas pareciam bem, relaxando e dormindo.  Voltamos em outro táxi, ela ainda muito cansada da viagem precisava dormir.

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Descansando no maior conforto!

Eu fui conhecer uma lanchonete de rede internacional, uma das patrocinadoras dos Jogos Olímpicos na China, que seriam no ano seguinte.  O paladar do sanduíche é sempre o mesmo, o do refrigerante muda um pouco por causa da água, mas o copo plástico comemorativo era único.  E assim aparecia o primeiro trambolho para ocupar espaço na mala.

Por sugestão do hotel, que sempre considero uma boa fonte de informação, fui de taxi (confiante no esquema dos cartões) conhecer o Templo do Lama, o único santuário budista de Beijing que não foi destruído durante a revolução cultural por causa da influência do ministro Zhou Enlai.  Ele batalhou pela sua salvação argumentando seu valor artístico.  Muita gente frequenta o templo e faz suas orações, não é mais proibido.

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Tijolos coloridos e a sempre presente figura do felino.

O ingresso foi guardado dentro do copo olímpico, pois é um pequeno disco com um filme sobre a história do templo.  Narrado em mandarim, mas não importa, recordação é recordação.  E o copo já tinha alguma utilidade.

Fiquei impressionada com a poluição do ar.  Não se via o céu.  O azul não existia.  Nem o negro da noite; havia um cinzento borrado.  As pessoas ali não saberiam como é uma estrela.  Nariz fungando e olhos ardidos.  Fazia muito calor.

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Tinha chovido e mesmo assim a percepção da poluição era forte.

Naquela noite era o jantar de encontro do grupo.  Cinco brasileiros, todos na opção de serviços em inglês.  O guia chinês enfim apareceu e ficou logo claro que não tinha muita segurança no que estava fazendo.  Eu tinha conhecido Beijing na minha primeira aposentadoria, esse guia agora não seria melhor que o Zhu.

Seriam dois dias de visita com as Muralhas, Templo do Céu, Caminho Sagrado, Praça da Paz Celestial, jantar de pato laqueado.

C3 Muralha 1

A muralha que parece seguir ao infinito.

Conheci um lugar diferente de acesso à muralha.  Esse era mais tranquilo, mais verde.  Sempre impactante, uma força que corresponde a cada pedra.

C3 Muralha 2

Gosto desta imagem da muralha com a nova rodovia passando bem perto.  Tempos diversos.

Fazia muito calor e houve uma pausa para almoço no hotel.

À tarde continuaram as visitas e fomos ao Caminho Sagrado, com seus ministros e animais.  É uma visita que me agrada, não sei se pelo amplo espaço ou pela sua claridade.

C3 Caminho

Guerreiro no Caminho Sagrado.

A tarde terminou na Praça da Paz Celestial, onde comprei umas 10 ou 12 pipas de papel de arroz que na volta distribuí para a criançada.  Uma delas ficou pendurada no meu quarto por anos, até quase se desfazer.

C3 Praça da Paz

Praça da Paz Celestial e ao fundo o Congresso do Povo.

As visitas redistribuídas por causa dos problemas de chegadas não foram prejudicadas.  Pelo menos foi o que eles disseram, mas acho que faltou o Palácio de Verão.

À noite, jantar com pato laqueado, que não acho nada demais.  Há comidas muito mais saborosas por lá.  Mas vale a tradição e sua nobreza.  Este jantar foi num centro cultural e de artesanato perto do hotel e na volta vinha caminhando com uma senhora sul-africana, que seria minha vizinha de cabine, quando fomos abordadas, mais especificamente ela, por alguns jovens.  Queriam de qualquer forma que ela os acompanhasse num passeio noturno, não iriam cobrar nada, apenas queriam ter a oportunidade de falar inglês e praticar antes das Olimpíadas.  Minha cabeça voou no tempo e no espaço até a beira do lago de Guilin, quando Marilza e eu sofremos uma abordagem bem semelhante.  Saí puxando por ela até estarmos dentro do hotel.  Só aí comentei sobre minha lembrança.  Não sei se ela se aborreceu, mas achou minha explicação sem sentido, preocupação desnecessária.  Ela não acreditou que houvesse risco algum.  Fiz o que achei que devia e repetiria se necessário.

O último dia em Beijing começou no Templo do Céu, um símbolo extra oficial da cidade.  É realmente muito marcante com seus quatro níveis.

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Templo do Céu com seu globo dourado do Imperador Celestial.  Acho esse templo a cara de Beijing.

Na saída, um outro momento chinês – os idosos praticando Tai Chi Chan no parque junto do templo.  Eles mantem a tradição num país onde não existe sistema previdenciário e o único filho deve sustentar os pais.  Esses exercícios se tornam importantes socialmente.

C4 Tai chi no templo

Tai Chi Chuan no parque.  Coordenação invejável dos movimentos.

A última visita foi a Cidade Proibida.  Ali não há o que discutir, é para encher os olhos e deixar-se deliciar com aquele vermelho.  E sem esquecer de olhar os telhados.  Mas foi aí que senti mais falta de um bom guia.  A visita ficou bem sem graça.

C4 Cid Proib pavilhões

Pátio entre os pavilhões dentro da Cidade Proibida.

As visitas de Beijing terminavam com o almoço e dali seguimos para o embarque num trem de linha convencional.  Acho que o embarque foi na Estação Oeste, uma enormidade de tamanho e uma quantidade assustadora de gente.  As malas estavam despachadas desde de manhã, na saída do hotel, para o vagão de carga.  Arrastando maleta de mão, corríamos atrás do guia apressado e o medo de se perder ali fazia as pernas ficarem mais ágeis.  Tínhamos cabines para passar a noite e logo foi servido o chá.

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Não tinha chuveiro no trem, mas tinha chá em serviço de porcelana.

Mas não havia chuveiros.  O calor do dia, caminhando debaixo daquele mormaço poluído, fazia seus efeitos.  E a brasileirada tomou banho de pia, refrescando-se na água fria.  Um alívio antes das 14 horas de viagem.  Ainda vimos com alguma claridade a saída de Beijing.

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A ferrovia seguindo na direção oeste.

O jantar também seria a bordo.  O sono foi bom.

Ao amanhecer já estávamos perto do destino, a cidade de Erlian, da qual nunca tinha ouvido falar.  Nada de bagagem para atrapalhar o passeio.  E na saída nos esperavam bicicletas tipo riquixá e seus condutores, que iam nos levar pelas avenidas amplas e surpreendentes da cidade.  A primeira coisa que me chamou a atenção foi que em cada uma delas havia um desenho diferente de luminária.

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Avenida em Erlian.

Nunca tinha estado no interior da China e encontrar uma cidade moderna, bem ordenada, limpa, espaçosa foi uma surpresa.

De repente surgia uma cena inusitada, com mais jeito daquilo que se imagina ser a China.  Ou do que foi a China.  Havia grupos de pessoas sentadas no chão pelas ruas, conversando.

E o calor de Beijing nos acompanhou a Erlian.

C5 Erlian pelas ruas

Contraste nas ruas.

No mercado central a propaganda vinha em três idiomas, nenhum deles inteligível para nós.

C5 Erlian mercado

Perguntei que idiomas eram aqueles – mandarim, mongol e tibetano.    No interior, o colorido de verduras e frutas.

A cidade surpreende até pelo tamanho e variedade de lojas nos seus centros comerciais.  Num deles comprei saquinhos de chá de flores, com flores desidratadas inteiras dentro.  Já em casa, quando fui beber, nem era tão gostoso, mas ficava lindo numa jarra transparente, flores abertas.

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Num dos centros comerciais da cidade, a mesma dificuldade de idiomas.  O máximo que se via era o alfabeto ocidental com as palavras locais.

Depois de passarmos o dia em Erlian, era hora de trocar de trem.  Por questões de “segurança”, a bitola dos trilhos chineses é diferente da bitola russa (melhor dizendo, soviética, já que é desta época) e mongol (que fora invadida pelos soviéticos).  O trem fretado não poderia chegar até Beijing.  Na fronteira os trens param lado a lado, em trilhos diferentes.  As malas grandes, identificadas desde a saída do hotel, já estavam nas cabines.  As maletas com que passamos a noite estavam reunidas para cada um indicar a sua.  A organização chinesa com as malas sempre me impressionou.

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O trem chinês vermelho e o Zarengold azul.

Hora de dizer adeus, China; olá Mongólia.

Saímos agora no trem fretado “Ouro dos Czares”.  Paramos logo depois da fronteira para uma recepção mongol na localidade de Zamin Uud, no Deserto de Gobi.  Música, comida, roupas tradicionais, instrumentos musicais regionais e camelos.  Camelos mesmo, os de duas corcovas, afinal ali foi região antiga da Bactria, que dá nome científico a esses animais.

M1b Camelos Zamin

Rebanho de Camelus bactrianus, legítimos.  Muitas fêmeas grávidas.

Ali ouvi pela primeira vez na vida os cantores de garganta, uma técnica de canto quase gutural, característica deles.  Primeiro soa estranho, depois o ouvido se acostuma e chega a ser melodioso.  Foi um bom começo.

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Roupas tradicionais, instrumentos locais e cantores de garganta.  Sons originais.

Ali também se podia visitar sem restrições um “ger”, nome mongol para a tenda nômade.  Essa era para turista ver, as verdadeiras têm um certo ritual que conheceríamos depois.

M1c ger interior

Interior do “ger”.  No centro sempre uma panela pendurada.  A estrutura de madeira tipo grade pantográfica que permite dobrar e ficar mais leve para transporte.

Meu grupo em inglês tinha dois casais e uma senhora sul-africanos, um casal de origem indiana de Durban, e os cinco brasileiros.  Cada grupo tinha uma cor e o nosso Azul era de 14 pessoas.  Ali encontramos nossa condutora, a eficiente e doce Ekaterina.  Em cada cidade, cada grupo teria também um guia local.

Jantamos tarde, já no trem em movimento e a viagem seguiu durante a noite para a capital da Mongólia, Ulaan Baatar ou Ulan Bator.

Nos arredores da cidade viam-se muitos “ger”, as tendas mongóis.  No mesmo terreno onde estava a casa em estilo ocidental estava montada a casa tradicional.  Genial.

M2a Chegada

No início da manhã o trem vai percorrendo as estepes e as montanhas Altai, numa paisagem que vai alternando ger, casas e com muita criação de gado.

Estar nestes países tão distantes, geográfica e culturalmente, sempre me deixa com uma espécie de ansiedade boa.  Tenho sempre a expectativa de estar no meio de gente nova, situações originais, comidas diferentes, hábitos talvez estranhos.  É possível que a cada dia isso fique mais difícil por conta de viagens serem mais fáceis, globalização, filmes, intercâmbios, influência da internet.  Desembarquei em Ulaan Baatar me sentindo assim.  Seriam duas noites no Hotel Bayangon, malas grandes ficavam no trem.

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Logo na chegada ao hotel, uma espiada por uma varanda.  Uma cidade cheia de edifícios e bem ocidentalizada.

O serviço da empresa alemã se mostrava organizadíssimo.  Os grupos raramente iriam se encontrar durante as visitas dos próximos dias.  Todos faziam as mesmas visitas, mas em ordenamento diferente, não superlotando um pequeno museu nem enchendo de gente as fotos num monumento.  As refeições feitas nas cidades também eram distribuídas por restaurantes diversos.

O rapaz que nos ciceroneou na Mongólia foi mais que um guia, muito acima de qualquer expectativa.  Deu show, falou da vida deles, contou suas histórias recentes com o tempero de quem viveu aquilo.

Seria uma montanha de informação histórica, já que notícias daqueles lados raramente chegam para nós e tudo era novidade.  De forma muito resumida, aquela região sempre foi de povos nômades.  Houve um período turco (o atual Turcomenistão é bem próximo) que foi até o século IX, quando começou o disperso Império Uigur.  A unificação veio com Chinggis Khan a partir do século XIII.  Grande conquistador, levou tropas e descendentes até a Europa (Hungria e Polônia, além da Rússia). Ele criou o Império Mongol e mesmo algumas gerações depois, todos os povos da região buscavam algum parentesco com seu grande herói.  O período dos Khan foi até o século XVII e terminou na invasão chinesa com a perseguição e escravidão ordenada pela dinastia mandchu.

A situação mudou em 1911 quando caiu o último imperador chinês.  Alguns anos depois o país se declarou independente e começou a buscar reconhecimento internacional.  Após a Segunda Guerra Mundial era total a influência soviética, que passou a determinar o modo de vida e suprimir tradições.  A nova guinada veio com a dissolução da União Soviética, quando em 1990 se declarou um país multipartidário e promulgou nova constituição em 1992 e passou a ser administrado como país sujeito às normas de mercado.

A palavra khan designa governante.  Chinggis Khan é o título de grande governante; seu nome era Temuigim, que significa homem de ferro.   Nosso guia fez questão de frisar que a pronúncia Gengis, popular no ocidente, é errada.  Ele foi sucedido por seu filho Ugudei Khan e por seu neto Kubilai Khan.

A primeira capital da Mongólia foi Karakorum, da qual só restam ruínas.  A capital foi mudada para a antiga Urgol, e seu nome alterado para Ulaan Baatar, que significa guerreiro vermelho.  Nela se misturam as residências tradicionais e os prédios de estilo ocidental.

A primeira parada foi na praça Shukhbaatar, onde ficam o Parlamento e a sede do governo.  A praça é uma homenagem ao responsável por pedir apoio soviético em 1921 contra a dominação e extermínio praticado pelos chineses da etnia mandchu durante quase três séculos.

M2g Pr Shuk...

 

Monumento a Shukhbaatar, no centro da praça que leva seu nome.

Nesta mesma praça a população se concentrou pedindo o fim da interferência russa em 1990.  E nesta mesma praça fica aquele que talvez seja o mais reverenciado do país, o criador do Império Mongol, Chinggis Khan.  É ali que grandes eventos acontecem, e havia um casamento.

M2b Monumento

Na praça Shukhbaatar, o grande monumento a Chingis Khan, tendo à esquerda seu filho Ugudei Khan e à direita seu neto Kubilai Khan.

E começou a confraternização com um casal de noivos e suas famílias.  Nós estrangeiros nas fotos com eles e eles nas nossas fotos, e o guia traduzindo para lá e para cá.

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Confraternização com muita simpatia e fotos.

Visitamos palácios e templos, temperados com casos recentes que o guia contava.  Um dos mais interessantes foi sobre o esforço local para reverter o encolhimento do idioma e alfabeto locais, que foram proibidos de usar durante os muitos anos da ocupação soviética.

M2d Chinggis

A imagem de Chingis Khan numa encosta.

Foi um dia cheio, produtivo, muita aprendizagem.

Sempre tem a visita a uma loja especial.  Peças lindas e absolutamente inúteis para brasileiros.  Cachemira e todo tipo de lã em agasalhos pesados.

Depois do almoço, visita ao Templo do Lama Choijin, transformado em museu quando Stalin impôs à Mongólia o regime comunista soviético.  Foi construído por um monge que era irmão do último Khan no início do século XX, tendo peças desde o século XVII.

M2h T Choigin

 

Um dos seis templos do complexo de Choijin.

Para completar, haveria uma apresentação extraordinária da Grande Orquestra Nacional.  O volume de turistas no trem e outros grupos chegados naquele dia valiam essa apresentação.

M2i Pano de cena

Pano de cena no palco do Teatro da Ópera de Ulaan Baatar.

Músicas, trajes, instrumentos e cantos tradicionais.  Achei sensacional.  Na saída comprei um dos CDs da orquestra, que é prazeroso de ouvir e relembrar.

M2 j Orquestra Nacional

Grande Orquestra Nacional com seus instrumentos regionais e roupas tradicionais.

As refeições na cidade não assustaram.  Um pouco da comida mongol, rica em gordura, e “comida turística”, aquela neutra e comum.

Da janela do quarto do hotel dava para ver um pedaço da cidade iluminada.

M2j Av Chinggis noite

Luzes e lua cheia sobre a Avenida Chinggis.

Neste segundo dia mongol começamos pelo Monastério Budista de Gandantegchenling – mais conhecido por Gandan – instalado neste lugar em 1838 e recebeu prédios e antigas imagens de outros lugares.  Em 1938 o regime comunista suprimiu comunidades religiosas mongóis, eliminou monges, destruiu 900 templos e monastérios.  Alguns edifícios de Gandan foram mantidos como alojamento de soldados e estábulos.  Retomou atividades religiosas e a escola monástica de budismo Mahayana em 1990; tem escola para órfãos e centro de medicina tradicional.

É em Gandan que fica Migjed Janraisig, símbolo da independência para os mongóis, construído por Bogd Khan, 8ª reencarnação do último governante secular e espiritual da Mongólia. No seu interior fica a imagem de Janraisig, o Buda da Compaixão, com 26,5 m de altura.  A imagem original foi destruída em 1938 e a nova é de 1996, feita em cobre da mina de Edernet e recoberta de ouro.  Não pode ser fotografada.  Logo perto, a grande Roda das Preces.

M3a Gandan

Gandan.

Depois, uma olhada no museu aberto sobre a Rede Ferroviária, uma herança soviética.

M3b Museu

Locomotivas soviéticas.

A cereja do dia era a visita ao Parque Nacional de Terelj, no vale central do país, chamados de Alpes da Mongólia, duas horas ao sul de Ulaan Baatar, onde existe uma área rica e montanhosa.

Já no parque, que é uma área para prática de antigas tradições, incluindo o xamanismo, uma parada no caminho para ver um “ovoo”, o monte sagrado onde se jogam três pedras e se amarram echarpes de seda verde e amarelo (natureza), azul (céu) ou vermelho (fogo).

M3d Ovoo

O sagrado “ovoo”.

Foi quando tirei uma foto apaixonante de uma menininha.  Suas bochechinhas queimadas de frio davam uma enorme vontade de cuidar e proteger.  Dava uma certa tristeza pelo seu jeitinho meio descuidado, sentadinha perto do “ger” de sua família.

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A delicada lourinha mongol.

No parque ainda vivem famílias nômades, seus iaques e tradições.  Mulheres somente do lado direito de quem entra no “ger”.  Oferecem o kumys, que é o leite fermentado de égua, para provar.  Eu não iria perder.  Tem gosto bom, de iogurte bem ácido.

M3f nômades

Entre as pessoas da família.

Um comentário do nosso guia que anotei em minhas fotos é sobre o hábito nômade de não fazer provisões para o gado durante o inverno, gerando morte nos rebanhos e prejudicando principalmente a alimentação das crianças.  Apesar de protestos dos mais tradicionalistas, agências internacionais vêm trabalhando para estabelecer um novo padrão que não perca a cultura nômade.

M3e Ger

Os “ger” e os pertences da família nômade em Terelj..

Almoço de comida tradicional, sempre com muita carne, servido numa enorme tenda.  Esqueça colesterol e triglicerídeos, a gordura está toda lá.

  Para a tarde, uma demonstração dos eventos sociais e desportivos que ocorrem durante o feriado nacional de Naadam, a festa nacional que acontece entre 11 e 13 de julho.  São disputadas competições com as três funções masculinas.  A primeira é a luta, depois a arqueria e corridas a cavalo (sem sela, é claro).  A empresa alemã que faz o fretamento do trem cobra caro mas oferece um serviço de primeira.  E tem prestígio para conseguir a participação dos campeões do ano.

M3g luta

Os campeões do Naadam de 2007 fazem demonstração e explicam as regras da luta.

Na sua origem, apenas homens competiam, e as mulheres participavam com a música.  Mas elas já entraram pelo menos no arco e flecha.  O mais velho dos arqueiros, depois de explicar sobre a confecção e o manejo diferente dos arcos apresentou orgulhoso sua neta como competidora.  Todos trajavam suas roupas de feriado e competição.  Uma tarde esplêndida.

M3 garotos

Os adolescentes ainda não podem competir porém já participam mostrando suas habilidades sem sela.

Cães peludos acompanhavam tudo, sem se manifestar.  Alguns iaques apareceram e se deixavam acariciar; o pelo sedoso é muito suave ao tato.  Uns 2 ou 3 fios ficaram na minha mão, e guardo junto das fotos.

M3h iaques

Iaques, que eu nunca tinha visto.

Até ali não tinha conseguido nem um suvenir para minha coleção.  Na volta à capital, paramos num centro comercial e consegui um ímã de geladeira, que se deformou logo depois da chegada, e uma miniatura de “ger” feito em lã de camelo e tão perfeita que tem até a exígua mobília que eles usam.  É um dos meus favoritos dentro da minha vitrine.

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No centro de Ulaan Baatar.  A quantidade de carros e utilitários particulares chama atenção e o engarrafamento é frequente.

Jantar de despedida com música, acrobatas e contorcionistas, deixando gostinho de queria ficar mais.