2008 / 2009 (dezembro e janeiro) – Réveillon em alto mar

Já não tínhamos mais o cachorro para cuidar e eu queria sair de casa no Ano Novo.  O melhor para a idade de minha mãe seria um cruzeiro.  Tudo dentro do hotel flutuante, e se quisesse sair para passear, podíamos.

♣  O roteiro: Uma semana de cruzeiro no navio Costa Magica.  Embarcamos dia 29 de dezembro de 2008 rumo à Bahia.  Depois para o sul, com destino a São Paulo.  Os passeios em terra já tinham sido escolhidos e comprados em casa, no site da empresa.

Partimos num fim de tarde, vendo desfilar os prédios do centro do Rio de Janeiro.  Ao nosso lado na amurada do navio uma família de Santos aproveitando para perguntar sobre tudo.  Niterói e a Fortaleza de Santa Cruz também estavam lá para receber aplausos.

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Próximo ao cais na Praça Mauá, o Edifício “A Noite”, o primeiro arranha-céu da cidade, o “RB1”, um dos primeiros prédios espelhados no Rio e o velho relógio do porto.

O primeiro dia era todo de navegação e a preocupação era se minha mãe enjoasse.  Quando, há muitos anos, fizemos um cruzeiro até a Amazônia, ela passou alguns apertos.  Os navios mais modernos são bem mais estáveis e dessa vez não houve nada.

A primeira parada foi em Ilhéus.  A visita que tínhamos escolhido era a uma fazenda de cacau, embora a situação não fosse das melhores desde que uma praga chamada “vassoura de bruxa” tinha feito um estrago nas plantações.  Valeu a pena, até porque fizeram um salamaleque completo para minha mãe.

De tarde fui ver o Bataclã, o Bar Vesúvio, o Museu Jorge Amado, tomar sorvete.  Das páginas de Gabriela para a realidade, o imaginário completa o que faltar.

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No centro antigo de Ilhéus.

Seguimos para Salvador.  A parte da visita que era pelas ladeiras a minha mãe não fez, o que é compreensível.  Revi o principal e básico da cidade, do Elevador Lacerda ao Pelourinho, passando pelo Farol da Barra onde ia acontecer a festa maior do Ano Novo.  Na visita das igrejas barrocas, o ouro e os detalhes das igrejas continuam me impressionando.

Terminamos no Mercado Modelo e de lá pegamos um taxi porque eu queria ver o Dique do Tororó e seus orixás gigantes.  O motorista foi gentilíssimo, caminhou conosco um pouquinho e explicou tudo, mostrando orgulhoso e triste o estádio da Fonte Nova que ia ser demolido dentro de poucos dias.

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Dique do Tororó com os Orixás.  Ao fundo o Estádio da Fonte Nova.

Na volta ao porto, passamos por uma fila que não se sabia onde começava e muito menos onde terminava.  Era gente indo para a ilha de Itaparica.

O último pôr do sol do ano foi bem bonito, lembrei daquele que tinha visto no Uruguai.  Não era tão vermelho, mas pôr do sol e mar sempre combinam.

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Em alto mar, o último pôr do sol de 2008.

A festa a bordo não poderia ter fogos.  Muita música e muita confusão nas mesas montadas para a ceia, o que me decepcionou um pouco com a organização.

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A festa no convés para receber 2009.

O outro dia era todo de navegação, na direção do sul.  Com a festa e as bebidas, pouca gente estava acordada.  Fui um pouco para a piscina, mas aquelas brincadeiras eu acho meio chatas, algumas se tornam grosseiras.

A hora do almoço era sempre meio tumultuada por causa do bufê na piscina, mais concorrido que o serviço nas mesas dos salões fechados.  Mas era bom para variar.

Mais tarde fiquei analisando a decoração do navio.  Avaliei como sendo de bastante mau gosto.  O que mais eu ficava cismada eram umas luminárias que pareciam os braços musculosos e as mãos verdes do Incrível Hulk segurando lâmpadas de uma sala pintada em rosa forte.  O restaurante também tinha uns enfeites estranhos, piorados com a decoração das festas.  Tudo muito confortável, mas as cores eram fortes.  É uma opinião de quem não entende nada de decoração.

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Os salões rosados do Hulk.

Na parada em Ilhabela, tinha reservado apenas para mim um passeio de jipe para dar a volta na ilha.  Tinha chovido tanto por lá que os passageiros inscritos foram chamados para avisar do cancelamento deles.

Outros dois transatlânticos chegaram por lá no mesmo dia.  Sem nada para fazer fora dali, aquele monte de gente ficou rodando à toa pela orla.  Cidade pequena superlotada.  Apesar do dia muito nublado, estava quente.  Não havia mais sorvete nem nada gelado na cidade.  Quem tentou um restaurante para variar da comida à bordo, eles estavam com fila de espera sem previsão de hora.  Resolvi pegar a lancha e retornar ao navio.  Melhor mesmo era comer a comida deles, que não era ruim, mas já ficava sem graça, o paladar pedindo um tempero mais original.

Na hora de sair, o sistema de som do navio chamava insistentemente algumas pessoas.  Nunca soube o que aconteceu, foram até procurados em terra mas ficou o mistério.  Nem para matar a curiosidade sobre a bagagem, se ficara a bordo ou não.

Última escala em Santos, que eu não via desde 1982.  Mais que bodas de prata de ausência.  Fizemos a visita guiada e gostei muito da antiga Bolsa do Café.  Na passagem pela orla, as praias lotadas.  Pensei que minha mãe cansasse, mas andou bem, apesar do mormaço quente.

O navio partiria ainda naquela tarde.  Surpreendente a animação do pessoal em terra, ao longo do canal de saída, fazendo a maior festa para os barcos que passavam.

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O pessoal faz a festa na saída dos transatlânticos do porto de Santos.

Desembarcamos sem atropelos na manhã seguinte.  Não sem antes acordar cedinho para ver chegar o Pão de Açúcar com a Praia Vermelha, Copacabana, o Corcovado, a minha cidade.

Foi um bom começo de ano.  Minha mãe até gostou do programa.  Nos horários de navegação, ela ficava ouvindo música nas salas, ficava olhando os detalhes aqui e ali.  Também achou horroroso o Hulk nos salões rosados.  De minha parte, aproveitei bastante o Pilates de solo como atividade incluída; gostei da experiência.  Não tem nem uma foto de minha mãe, ela odeia tira-las.

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Essa é a minha Praia Vermelha, o meu Corcovado, o meu Morro da Babilônia.  Lugares bem conhecidos na paisagem perto de onde foi a minha faculdade.  Afinal, eu tenho orgulho desta que chamo de minha cidade.

2008 (agosto e setembro) – Gigantes, castelos, ovelhas e neblina

Olhando o mapa da Europa, já era possível marcar que países ou pedaços de países me faltavam conhecer.   Irlanda e Escócia estavam faltando.  De repente um antigo colega de trabalho perguntou se eu conhecia a Calçada de Gigantes.  Misture as duas coisas e está alinhavado um roteiro.

♥ O roteiro: Seriam todos lugares desconhecidos para Marilza e eu (que deles só conhecia Londres).  Começaríamos pela Irlanda do Norte (às vezes chamada de Ulster) para ver a tal calçada.  Sabendo que o melhor da Irlanda (em irlandês, Éire) fica nas estradinhas do litoral chuvoso e que a Escócia seria semelhante, optamos por dois pacotes de uma semana cada um, antecipando a chegada a Dublin.  No final de tudo ficamos uns dias em Londres.  Muitas novidades.

O voo de conexão de Londres para Belfast, na Irlanda do Norte, não pode ser com horário muito apertado.  Marilza (para quem ainda não sabe, é uma amiga de longa data que às vezes viaja comigo) e eu caímos com uma agente de imigração que procurava minúcias desde o bilhete do voo da volta, voucher do pacote, quanto tínhamos de dinheiro, seguro de viagem, perguntava repetidas vezes por que queríamos ir para Belfast.  Foi quase uma hora em pé, mostrando papéis, cartões e paciência.

Enfim liberadas e já em Belfast, fomos do aeroporto para o centro de Belfast de ônibus, o nosso hotel “Europa” era ao lado da rodoviária.

Tínhamos a tarde toda livre.  Encontramos um taxista na porta do hotel, tratamos o preço e ele nos levou e nos esperou no Castelo de Belfast, no alto do Cave Hill Country Park. Mesmo com tarde nublada, normal por lá, tivemos uma bela vista para a cidade, o porto e o estaleiro onde foi construído o Titanic.

A ocupação do morro começou com uma primeira construção defensiva no século XII, que foi modificado e ampliado várias vezes, até ser destruído por incêndio em 1780.  O edifício atual foi construído em 1870, reproduzindo o estilo escocês do castelo de Balmoral, da família real britânica.

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Castelo de Belfast e a Fonte do Gato.

As lendas do castelo fazem referência à presença permanente de um gato branco que traz boa sorte aos visitantes.  No Jardim do Gato existem nove referências a ele, como as que ficam na fonte e na figura em topiaria.  Hoje em dia é administrado pelo órgão local de patrimônio, tem um pequeno museu e pode ser alugado para festas e casamentos. E neste dia havia uma, com fotos nos jardins e vários acenos para nós, as únicas bisbilhoteiras presentes.

Na volta, o motorista propôs passarmos pelos murais pintados pelos grupos católicos e anglicanos, deu uma parada para vermos mas pediu que não fotografássemos, ainda havia gente sensível.

Deixou-nos no centro da cidade.  Logo no primeiro dia eu precisava comprar uma super cola porque a sola do tênis estava se soltando.  Cola comprada, vamos andar por ali.

Belfast é uma cidade bonita, meio antiga mas bem simpática.  E deve-se logo esquecer as notícias de guerra religiosa.  A capital do Ulster é um encanto, com gente bonita e informal. Ninguém olha atravessado para o turista; ao contrário, são bem sorridentes.

Para jantar, sabíamos que o hotel ficava em frente dos dois mais tradicionais pubs da cidade, o The Crown Bar e o Robinson’s.  Seriam dois jantares, um em cada pub.  Dizem que durante as disputas internas, o hotel foi quase destruído, mas os pubs nada sofreram.  Sempre tinha ouvido falar que a comida nas duas Irlandas era muito ruim, mas não foi isso que encontramos por ali.  Pedimos cerveja Guiness, quase uma obrigação, mas não gostamos.  Muito pesada, parecia viscosa.

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Os dois pubs mais famosos de Belfast.

No dia seguinte ficamos meio atrapalhadas esperando a saída do passeio até a Calçada de Gigantes, motivo maior de nossa ida até Belfast.  Achamos que o passeio não ia acontecer pois a agência estava fechada.  No nosso voucher dava um horário de saída e na realidade era mais tarde.

Enfim saímos para o dia inteiro de passeio pelo Condado de Antrim.  Fizemos várias paradas, começando pelo castelo na cidade de Carrick Fergus, que existe ali desde 1180, como fortaleza sempre renovada ou como prisão.  Serviu como base militar e abrigo até a Segunda Guerra Mundial.

Passamos por Larne e chegamos a Carrick-a-rede.  Carrick significa pedra; rede significa corda.  O resultado é uma ponte pênsil de cordas trançadas que leva até um rochedo.  O detalhe é que a ponte só é visível quando se chega a ela.

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Carrick-a-rede

A tradicional visita para compras foi numa destilaria, a Bushmills, que é apresentada como a primeira que foi legalizada no Império Britânico.  E não é só isso.  Seu produto era considerado um “uísque protestante”, não consumido na Irlanda hoje independente e católica.

E finalmente a Calçada de Gigantes.  O ônibus estaciona no alto, e pode-se descer a pé ou no veículo local.  Descemos a pé, com chuvinha fina.

A Calçada de Gigantes é daqueles lugares que nenhuma foto pode mostrar o quanto é especial.  Pedras perfeitamente arrumadas, recobertas de liquens e umedecidas por chuva quase permanente e respingos das ondas do mar.

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A sensação de caminhar sobre aquelas pedras incríveis.

Caminhando mais um pouco, colunas bem altas formando um trecho chamado “The Organ”.

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Mais afastadas do mar, colunas enormes formando o Órgão.

Antes da viagem, quando comecei a procurar informações sobre este lugar, percebi que eu conhecia a lenda por causa de um desenho animado chamado Piggley Winks.  O gigante irlandês Finn Mac Cool marcou uma luta tradicional com seu rival escocês Benandonner.  Com suas habilidades de construtor, Finn Mac Cool trabalhou sem parar numa ponte de pedra que ligasse as duas ilhas, permitindo que Benandonner chegasse sem molhar os pés.  Finn trabalhou tanto que no dia da luta estava exausto e adormeceu.  Sua esposa Oonagh viu o oponente se aproximar, tentou acorda-lo, mas foi impossível.  Decidiu cobri-lo com uma manta, disfarçando-o como um bebê.  Quando o escocês perguntou por Finn Mac Cool, ela respondeu que já estava chegando e apresentou seu “filho” adormecido.  Vendo um bebê daquele tamanho, Benandonner imaginou o tamanho do pai e achou que o melhor era não enfrentar tão imensa criatura.  Na sua fuga para a Escócia, ia quebrando toda a ponte de pedras para evitar que Finn Mac Cool o perseguisse.  Acho que a vitória cabe à esperta Oonagh!

O fato geológico tem menos graça – é uma extrusão de lava basáltica num terreno calcário durante o período Paleocênico (65,5 até 23,5 milhões de anos atrás, uma época onde já havia aves e mamíferos).  O rápido resfriamento da lava provocou fraturas, geralmente de forma hexagonal, formando a “Calçada de Gigantes”.  A costa irlandesa do Condado de Antrim tem semelhança geológica com a costa escocesa do outro lado do canal.

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Um lugar inimaginável, só mesmo um trabalho de gigante.

Depois da visita, acho mais interessante a lenda.  Gosto mais de pensar que Finn Mac Cool fez um belo trabalho.

Privilégio ter estado lá.  Prazer imenso rever essas fotos e lembrar desse dia.

A última parada foi para ver as ruínas do Castelo Dunluce, ainda na costa de Antrim, construído no século XIII e que pertenceu ao clã Mac Donnell.   O lugar é lindo e a neblina só aumenta o clima de mistério.

Para terminar um dia incrível, um jantar de despedida no outro pub, o Robinson’s.  Também comida boa.

Ainda tivemos a manhã livre, sempre com chuva.  Fomos até o Waterfront, junto do monumento do peixe, depois ao mercado coberto e já um tanto molhadas resolvemos dar uma volta na roda gigante.  Foi sorte.  Enquanto girávamos caiu uma chuva grossa.  Na saída, já estava de volta a chuva fininha, que seria nossa companheira quase diária pelos próximos dias.

Precisamos de um táxi até a estação de trens, impossível ir com as malas debaixo de chuva.  O embarque é tão controlado quanto de um aeroporto.  Seguimos pela única ferrovia da ilha.  Alguns dias depois soubemos que outros trechos na Irlanda “Éire” foram desmontados para que o país pudesse usar o dinheiro da venda dos trilhos para começar sua vida de país independente.  E nunca mais refizeram a malha ferroviária.  Só existe mesmo esse trecho que vem da Irlanda “Ulster” até Dublin.  Quase perdi o trem numa parada que ele fez, pois desembarquei para fotografar a estação e me distraí naquele minuto usual das paradas.

Chegamos a Dublin, capital da Irlanda, quando o sol saía depois da chuva.  O hotel era perto e fomos andando.  Estávamos chegando antes da data de início do pacote irlandês para podermos aproveitar bem em Dublin.

No check in do hotel, a surpresa.  Não havia nada em nosso nome e o hotel estava lotado.  Só havia reserva para o grupo que encontraríamos dentro de dois dias.  Bateu o pânico.  Num sábado à tarde não encontraríamos ninguém na agência do Brasil para nos socorrer.  Na hora do sufoco não achei o número do telefone celular da nossa agente de viagens. Tínhamos o telefone para passageiros da operadora espanhola, que também tinha sido a encarregada de antecipar nossa reserva em duas noites.  Na Espanha não nos explicaram nada, quem atendeu o telefone de emergência para viajantes não sabia resolver nem encaminhar nada.  Lembrei de telefonar para o hotel previsto anteriormente e nosso nome constava para um pernoite mas no dia seguinte.

Enquanto isso, as moças da recepção já tinham descoberto um quarto vago no hotel, que estava pronto para ser usado, faltando apenas alguns detalhes de lâmpadas e arremates da sua reforma.  Aceitamos e nos dispusemos a pagar caso a agência não resolvesse nada.

Não adiantava sofrer nem brigar naquela hora.  O hotel era daqueles, como muitos na Europa, formado pela reunião de diferentes prédios antigos, em que os andares não estão no mesmo nível.  As passagens de um para outro são escadinhas de 3 ou quatro degraus e para chegar ao nosso quarto tivemos que levar as malas por diversas delas.  Claro que ele era o último do último edifício, sem opção de outro elevador.  O quarto era amplo, tinha poucas lâmpadas funcionando como nos avisaram.  O trem passava no alto, bem perto da janela mas o isolamento era perfeito.  O banheiro era ótimo.  Então vamos aproveitar logo a cidade e sua vida reconhecidamente alegre.  Antes de sair, usamos o computador do hotel e passamos mensagens por e-mail para nossa agente de viagens relatando o caso e para a irmã de Marilza pedindo que insistisse com a agência.  Não reparamos que o telefone do quarto não funcionava.

Fomos para a zona de pedestres, cheia de pubs e restaurantes, chamada Temple Bar.  Muita gente e nós tínhamos fome.  Restaurante cheio é bom, e foi assim que escolhemos.  Comemos muito bem, ainda longe da fama de comida ruim.  E ficamos pela rua para ver a agitação do pessoal.  E um pouco de música ao ar livre também é bom.

Para nosso primeiro dia livre em Dublin, fomos fazer o passeio de ônibus hop on hop off, já contando que o city tour incluído quando nos juntássemos ao grupo fosse meio fraquinho.

O primeiro contato com as antigas residências, chamadas “Casas Georgianas” (referência ao rei George III, que governou de 1760 a 1801) foi esclarecedor, para dizer o mínimo.  Nenhuma delas tem jardim ou pátio interno ou quintal.  Todas são construídas de frente para uma praça.

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Casas Georgianas e ao fundo a igreja de Saint Stephen.

Cada morador tinha que pagar para ter uma chave do portão da praça mais próximo de sua casa.  A praça era de uso exclusivo, cada quarteirão com sua praça.  Já faz muitos anos que os portões são mantidos abertos, o uso é público.

Eu queria de qualquer jeito conhecer o Livro de Kells.  São quatro volumes de iluminuras sobre pele de animal, com gravuras e textos em latim dos Evangelhos, em grafia característica das ilhas.  Esse trabalho sobre pergaminhos é o hóspede de luxo do Trinity College, fundado em 1592 pela Rainha Elizabeth I, a mais renomada escola do país.  Nunca tinha visto um livro de iluminuras como aquele.  Os poucos volumes se revezam na exposição cheia de segurança.  Até nem pegamos fila, o que é raro porque todo mundo vai lá.  Os volumes do Livro de Kells chegaram ao Trinity College no século XVII e são expostos desde o século XIX.  Vale a pena, é uma relíquia linda.

O resto da cidade respira alto astral.  Parece que superaram bem as crises e dificuldades da época da independência.  Desfrutamos intensamente cada ponto de visita.  Voltamos a Temple Bar, ainda vazia no meio do dia.  Cruzamos Ha’penny, a ponte mais famosa sobre o rio Liffey, perto de Temple Bar.  Seu construtor em 1816 foi o Duque de Wellington, que queria cobrar meio pence (half pence ou ha’penny) de qualquer pessoa que passasse sobre ela.

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Alguns dos pubs em Temple Bar.

A avenida principal é a O’Connell, em homenagem ao patriarca da República da Irlanda, Daniel O’Connell, (1775 – 1847).  A independência só aconteceu em 1922 após alternância de acordos e conflitos com o Reino Unido.  Ali descobrimos uma loja ótima para todo tipo de suvenir da Irlanda, incluindo bonequinhos de Finnegan, o duende mais famoso do país.

Próxima parada foi a Catedral de São Patrício, padroeiro da Irlanda, construída a partir do século XII.  Diz a lenda que São Patrício (nascido na Bretanha no final do século IV) batizava os convertidos no poço do pátio junto da igreja.  Durante muitos anos, as antigas catedrais católicas foram convertidas ao culto protestante por ordens dos monarcas britânicos.  Consta do tratado de independência que tais catedrais não poderiam voltar ao culto católico, apesar desta ser a quase única e fervorosa religião do país.

Voltamos ao hotel e até ali, nenhuma resposta sobre o caso das diárias.  Retornamos mais uma vez para jantar num dos pubs de Temple Bar.  A comida foi Dublin Coddle, carne de carneiro cozida com legumes e servida com purê de batatas e linguiças.

Como já tínhamos explorado a cidade e ainda teríamos a visita incluída no pacote, decidimos pelo tour ao castelo assombrado de Malahide.  Situado ao norte de Dublin, pertenceu à família Talbot de 1185 até 1973, quando morreu o último Lord Talbot e a propriedade foi vendida.  O fantasma do bobo Puck, que fazia a fama do local, desapareceu nesta época. Bonito, mas nada fabuloso.

De volta ao centro, caminhando meio sem destino, acabamos indo até o Parlamento, um edifício sem janelas, apenas iluminado pela claraboia, que não é visível da rua.

Caminhar pelo centro de Dublin é bem agradável.  Muitos turistas e gente local se misturam num clima sorridente.

Completamos nosso dia na Catedral de Christchurch, que foi criada em 1038 como catedral católica viking e ganhou a forma atual a partir de 1172.  Foi convertida a igreja anglicana no reinado de Henrique VIII.  Esta igreja irlandesa se declara como reformada sem romper com o cristianismo celta e medieval pois o último prior foi o primeiro deão.  Isso tudo está escrito lá, complicado é entender.  Como o país é principalmente católico, os cultos anglicanos são vazios e não há subvenção oficial, a manutenção do prédio é feita com a cobrança de ingressos.  Na antiga Sala do Sínodo, fica a exposição Dublinia, contando a história da formação da cidade desde o século XII quando cristãos anglo-normandos chegaram às terras dos celtas, passando pelos tempos dos vikings e terminando em 1540 com o fechamento dos monastérios.

Acabamos em Merrion Square, mais uma bela praça rodeada de Casas Georgianas.

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Merrion Square, antiga praça privativa.

Já estávamos numa segunda-feira e achamos que haveria resposta do Brasil ou da Espanha sobre o hotel, mas nada.  Fui ver se havia algum e-mail e lá estava um da nossa agência no Brasil informando que tinha nos telefonado tarde da noite, quando certamente estaríamos dormindo e ninguém atendeu.  Desconfiamos de defeito na instalação.  Então perguntamos sobre o funcionamento do telefone e então perceberam que não tocava no nosso quarto.  No e-mail estavam instruções para pagar e pegar toda a documentação.

Nesta noite foi o jantar de reunião do grupo.  Falei com a guia sobre o caso da hospedagem, ela ligou para o escritório na Espanha mas mandaram aguardar.  Difícil, pois deixaríamos o hotel na manhã seguinte.

Começo do tour de uma semana pela Irlanda.  Arrastamos toda a bagagem pelos longos e acarpetados corredores e escadas do hotel, um quase labirinto que custamos a nos acostumar.  Quando saímos do elevador, o pessoal da portaria nos chamou logo, a agência tinha confirmados nosso pagamento.  Enfim.  Terminava na terça feira o suspense começado no sábado.

Feita a visita da cidade, mostrando diversas coisas que já conhecíamos, terminaram dando um tempo a quem quisesse ver o Livro de Kells.  Nesse dia havia fila.  Aproveitei para comprar música irlandesa.

Seguiríamos um roteiro quase padronizado pela Irlanda, que de nenhuma forma compromete ou desmerece as suas belezas.  Ao invés de trafegar pelas grandes rodovias, o caminho era feito pelas estradinhas estreitas e antigas, que de um modo geral acompanhavam a costa e passavam pelos sítios mais antigos e tradicionais.  Quando via aquelas estradas estreitas e sinuosas, a chuva fina que insiste o ano todo pelo país eu agradecia mais uma vez a minha pouca disposição de viajar alugando carro e dirigindo.

Visitamos Clonmacnoise naquela tarde, junto ao rio Shannon.  São as ruínas do conjunto monástico fundado no século VI e transformado em mausoléu dos reis de Connacht e de Tara.  Ali conheci as cruzes irlandesas.  A explicação de nossa guia foi bem interessante.  O círculo era um elemento sagrado e mágico para os povos nativos.  Quando os cristãos chegaram com o símbolo da cruz, tiveram a ideia de associar os dois, tentando uma aceitação melhor da nova religião.  Deve ter dado certo porque os irlandeses são de maioria católica até hoje.

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No museu em Clonmacnoise, uma secular cruz celta esculpida em pedra.

Os dois próximos pernoites seriam em Galway, e um dia foi de visitas ao Parque Nacional de Connemara com seus monastérios.

A cidade de Galway não tinha maiores interesses, mas ali era o almoço.  A esta altura já tínhamos descoberto que o prato da temporada seria frango com batatas.  A cidade ganhou uma certa fama pois a família Kennedy, que teve presidente e senadores no Estados Unidos, foi emigrante desta localidade.

A próxima jornada era acompanhando o litoral.  Começando pelas enorme falésias de Moher, quilômetros de escarpas à beira mar, repletas de aves.  Uma paisagem para pensar em aventuras no mar violento, contemplado da torre O’Brien, uma edificação em pedras para ver o mar e um dos monumentos queridos dos irlandeses.  As costas irlandesas têm um certo jeito entre o bonito e o assustador, costas íngremes e o mar batendo lá em baixo.  Dá uma certa vertigem ou angústia de chegar muito perto da beirada para ver lá no fundo.

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Um surpreendente dia de muito sol e até um calorzinho para caminhar ao longo das falésias de Moher.

Seguimos para o Castelo de Bunratty que existe desde o século XV e hoje se mantém com espetáculos de música e jantares em estilo medieval.

Após o almoço, passagem por Limerick e Adare, para chegar bem no fim do dia a Tralee, já no Condado de Kerry, para o pernoite.

Eu me encantava com as muretas de pedras sobrepostas, cobertas de limo e plantas, fazendo a divisão entre os pastos que eram usados em rodizio.  E lembrava mais uma vez dos detalhes do desenho animado do Piggley Winks.

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Deliciosa paisagem rural onde cada pontinho branco é uma ovelha.

Dia inteiro de excursão pela Península de Dingle, um dos lugares mais autênticos da Irlanda, com uma natureza selvagem e mais de 2000 sítios arqueológicos.  Várias fazendas ficavam à beira-mar e era comum ver os animais passeando na praia.

Uma das explicações mais importantes da guia, excelente por sinal, é de que na Irlanda a neve praticamente não existe.  Benefícios da corrente marítima quente que vem do Caribe e não permite congelamentos.  As ovelhas são o gado mais comum e não há abrigos especiais para elas.  A chuva é constante mesmo, elas nem se incomodam debaixo da grossa camada de lã; e como a neve não vai aparecer, o pasto então fica sempre verdinho para elas usarem.  Mesmo assim, fiquei com pena delas.

O almoço foi na pequena cidade turística de Killarney e nenhuma surpresa quanto ao cardápio.  Visita à Mansão Muckross, que ainda conserva o nome da família que faliu preparando a casa para uma visita da Rainha Vitória; sem dinheiro, venderam a propriedade para os Guiness.  Depois teve passeio em carroça até as Cascatas de Torc.  Retorno ao hotel em Tralee, com tempo para dar uma olhada pela cidade.

Era a semana de uma tradicional festa local, a Rosa de Tralee, que é uma competição de simpatia com concorrentes irlandeses e descendentes vindos de outros países.

Àquela altura dos pubs, cada uma de nós já tinha sua cerveja favorita.  A minha era uma avermelhada escura chamada Smithwicks.  Marilza sempre prefere cervejas claras.

B7 Pub King's Head

Num pub chamado King’s Head.

Saímos de Tralee para percorrer o Anel de Kerry, uma estrada estreita ao redor da Península de Iveragh.  Os dias de sol do início do passeio desapareceram justamente no dia que talvez mais precisássemos de luz.  Aquele caminho é conhecido por suas paisagens fantásticas, sempre perto de despenhadeiros.  O que vimos foi muita neblina densa.  Vimos de passagem a pequena Cahersiveen, onde nasceu Daniel O’Connell (o negociador da independência da Irlanda).   Depois do almoço, tempo livre em Kenmare.

Neste ponto, todos reclamavam da comida monótona.  A explicação não convenceu, dizendo que era um opção da empresa por uma alimentação saudável e sem complicações.

Seguimos até Cork para visitar a igreja de Saint Finn Barre.  Levei um escorregão na entrada e caí de barriga no chão.  Sujei roupa e mão esquerda, porque a direita eu levantei para salvar a câmera fotográfica.  No alto de uma das torres existe um anjo dourado, que segundo a tradição, se ele cair sem interferência humana a igreja voltará ao culto católico.  Quando tivemos tempo livre no centro da cidade, a chuva voltou com força.  E um mercado coberto, cheio de queijos, estava ali nos esperando.  Mas deu para ver um pouco da cidade.

No último dia fomos até Kilkenny, com tempo livre para caminhar pela vila.  No meio da tarde estávamos de volta a Dublin e ao mesmo hotel onde iniciamos, desta vez sem sustos na hospedagem.  Era um domingo ensolarado, com todo o comércio aberto e multidão nas ruas.

Ainda deu tempo de fazer passeio de barco pelo rio Liffey, sentido o espírito de uma cidade animada e gente boa.

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O’Connell Street, Dublin em pleno domingo de sol.  Muita vida nas ruas.

Terminamos com um jantar em qualquer lugar que houvesse qualquer coisa para comer que não fosse frango com batatas.

Contudo, deve-se respeitar as ditas batatas e sobre elas cabe um pouco de História.  Elas chegara à Europa levadas pelos espanhóis em meados do século XVI.  Desprezadas por um tempo porque eram consideradas impuras, algum tempo depois foram incorporadas febrilmente a dieta básica de muitos lugares, afinal tinha um nível de nutrientes e calorias desconhecido para eles.  Remexendo internet, descobri que boa parte da aceitação delas se deve ao rei alemão Frederik II na metade do século XVIII.  E não custa lembrar que tomates, cacau, milho e outros alimentos foram levados das mesas incas e mesoamericanas para a Europa.

Na última manhã livre fomos dar um passeio para um dos lados do hotel que não tínhamos ido.  E ali voltamos às batatas.  Encontramos o monumento aos emigrantes e mortos durante a “Grande Fome”, uma praga de fungos que devastou as plantações de batatas – já eram essenciais na época – e provocou mortes, doenças e emigração em massa nos últimos anos da década de 1840.  Foi nesse tempo que famílias inteiras migraram para os Estados Unidos, influenciando fortemente a formação da população americana.

Hora de ir para o aeroporto (por sinal enorme) e o destino era a Escócia.

Encontramos logo com nosso transportador no aeroporto de Edimburgo.  Depois de alojadas no hotel, tínhamos a tarde livre, boa para caminhar pela cidade.

Fomos direto ao centro, com o castelo nos olhando lá do alto.

C1 Centro de Edimburgo com castelo

Centro de Edinburgh com o castelo no alto, ao fundo.

A cidade é acolhedora, chovendo ou abrindo um solzinho em poucos minutos.  Elegante e cheia de caminhos sombrios.  Acabamos na Royal Mile, os 1600 metros entre os dois castelos da realeza – Edimburgo e Holyrood.  E estava tudo muito animado, com o Festival de Edinburg e o Fringe, o festival alternativo pelas ruas.

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Royal Mile, num trecho fora da agitação dos festivais.

Tínhamos o jantar de encontro do novo grupo e qual não foi a surpresa com o cardápio!  Frango e batatas.  O prognóstico era sombrio.  O jeito era basear a melhor refeição no café da manhã e naquelas que não estivessem incluídas.

Começamos com a visita panorâmica de Edimburgo, seguida dos opcionais ao Castelo e ao Palácio Holyroodhouse, antiga residência dos reis da Escócia.  Fizemos os opcionais, que sempre incluem o melhor a ser visto.  Não renego nenhum city tour, mas eles não mostram o melhor; mostram um básico corriqueiro.

 Em Holyroodhouse vimos as ruínas da abadia erguida em 1128 pelo rei David, onde estão túmulos de diversos reis escoceses mas que está abandonada desde 1768 quando seu teto desabou, nunca sendo restaurada.  Talvez o mais famoso monarca escocês seja Mary Stuart, que também foi rainha da França por um curto período.  Ela residiu neste castelo, que é proibido de fotografar já que a atual família real fica nele quando está na Escócia.

Seguimos para o imponente castelo de Edimburgo, no alto de uma colina de onde se tem a melhor vista da cidade.  Ali dentro aconteceram fatos históricos marcantes.  O local foi ocupado desde o século VII, transformando-se em fortificação durante a Idade Média.  Com edifícios de várias épocas, sua forma atual começou em 1573, após ter sido praticamente destruído durante um dos muitos sítios que sofreu nas guerras religiosas entre escoceses e ingleses.  Neste castelo nasceu Jaime VI da Escócia, filho de Mary Rainha dos Escoceses.  Quando herdou a coroa da Inglaterra como Jaime I, foi para Londres. Apesar das coroas reunidas, os problemas religiosos continuaram até 1707 com o Ato de União.  Foi nesta época que as joias da coroa escocesa foram escondidas nas paredes do castelo, tornando-se uma lenda.  Foram redescobertas em 1818 por Sir Walter Scott (o mesmo que conseguiu o direito dos clãs escoceses voltarem a usar seus kilts).

C3 Castelo de Edimburgo 1

Castelo de Edinburgh.

Mais que o sumiço das joias, o caso que me chamou a atenção foi sobre a Pedra do Destino, um bloco de rocha que era usado para a consagração dos antigos reis escoceses.  No século XIII, num dos períodos de embates entre escoceses e ingleses, a Pedra foi levada para Londres junto com os outros símbolos da realeza escocesa.  O filho de Mary Stuart, uniu as coroas em 1603, tornando-se Jaime VI da Escócia e Jaime I da Inglaterra.  Por séculos, a Pedra ficou na Abadia de Westminster e era posta em baixo do trono inglês nas cerimônias de coroação, um simbolismo de submissão.  Em 1950 ela foi roubada por estudantes escoceses e levada para o norte.  Parece complicado roubar e carregar uma pedra de cento e tantos quilos.  Eles foram apanhados mas nunca foram processados.  A Pedra voltou a Londres até que em 1996 e através de um discurso do Primeiro Ministro John Major era declarado que a Rainha concordava em devolver aos escoceses seus símbolos reais, mesmo reafirmando que eles pertenciam aos britânicos.

Pudemos ver as joias e Pedra do Destino numa sala do Castelo de Edimburgo.  Quando voltei da viagem fui procurar fotos da coroação de Elizabeth II e lá estava a Pedra do Destino embaixo do trono de madeira.

No Castelo de Edimburgo funcionam instalações militares e o Memorial das Guerras, em homenagem a todos os escoceses que participaram de guerras em nome da coroa britânica.

Na minha cabeça, as coisas escocesas são meio trágicas, influência da decapitação de Mary Stuart, que foi rainha de França e herdeira presuntiva da coroa escocesa.  E os mistérios são alimentados por caminhos subterrâneos às vezes vistos das pontes que cruzam a cidade.  Não conseguimos visitar.

Mas deu para explorar bem a cidade, que cada vez se mostrava mais interessante.

Muitas lendas rondam Edimburgo.  Uma delas é de um cachorro, que alguns juram ser verdadeira.  Quando seu dono morreu, o cãozinho Bobby Greyfriars não se afastou do túmulo e foi cuidado pelas pessoas até sua morte em 1872.  Por sua fidelidade ganhou junto dele uma lápide que tem sempre flores e bichinhos de pelúcia.  E tem a simpatia de quem passa pelo cemitério bem central.

Seguindo a viagem, não podia faltar uma destilaria de uísque.  Para mim não faz a menor diferença se é de um malte só (que eles valorizam muito) ou não.  Apenas não gosto da bebida.

Gostei de Inverness, achei elegante, com comércio e casas bonitos.  E castelos ainda em pleno uso.  A visita incluía o de Cawdor, que é residência privada e o pagamento da entrada ajuda na sua manutenção, como em tantos outros.

Estávamos chegando à região dos “loch”, um típico lago escocês.

A paisagem e o clima mudam muito rápido.  Ali também passa a corrente quente vinda do Caribe e permite alguns jardins sub tropicais.  Pouco mais adiante a neblina encobre quase toda a paisagem.

E era o tão esperado dia de tentar ver Nessie.  A mais completa das sortes naquele clima instável é chegar a Loch Ness e ser uma tarde de sol.  E assim aconteceu.

Começando pelo Castelo de Urquhart, mais um de história complicada e trágica.  Sua origem é desconhecida e talvez exista desde o século XIII.  Os primeiro ocupantes documentados são da família Durward.  Nos séculos XV e XVI o castelo foi tomado pelo clã Mac Donald.  Em 1688 o rei Jaime VII da Escócia e II da Inglaterra – e que se convertera ao catolicismo – foi deposto por sua filha protestante e seu marido Guilherme de Orange.  Ela assumiu como rainha Maria II, começando a guerra entre orangistas e jacobitas (Rei Jaime em latim é Iacobus Rex, daí serem jacobitas).  Em 1692, para evitar que Urquhart se tornasse fortaleza jacobita, seus ocupantes incendiaram e depredaram o local de forma que não pudesse ser recuperado.  São essas ruínas que estão lá para serem exploradas e foram deslumbrantes para mim.  As cores das pedras, do “loch” e da tarde eram incríveis.

C4 Castelo Urquhart 4

Paisagem preciosa de Loch Ness e as ruínas do Castelo de Urquhart.

Junto das ruínas há um píer, de onde saímos de barco.  E veio a decepção de não encontrar Nessie.  Apenas uma escultura feia no píer do desembarque a representava.

De novo na estrada no dia seguinte, chegamos ao Castelo de Eilean Donan, de origens no século XIII, e que foi uma das fortalezas jacobitas nos séculos XVII e XVIII, quando foi bombardeado e deixado em ruínas.  Em 1911 as ruínas foram compradas por John MacRae-Gilstrap, que iniciou sua restauração, ficando pronto em 1932.  Foi mobiliado para uso da família.

C5 Castel Eilean Donan

Castelo de Eilean Donan na bela paisagem tipicamente nublada da Escócia.

É considerado o castelo mais fotografado da Escócia, e se mantém com o aluguel para festas e ingressos da visitação pública.

Cruzamos de barco até a ilha Skye, no arquipélago das Hébridas, para conhecer suas falésias cheias de cascatas diretamente sobre o mar.

Voltamos para a ilha da Grã Bretanha e no programa do pacote estava escrito que aquele pernoite seria na animada e turística Fort Williams.  Marilza e eu saímos para procurar algum lugar que fizesse jus ao escrito.  Colhemos e comemos amoras deliciosas no caminho e na cidade encontramos um conjunto residencial para idosos, um centro comercial fechado, a igreja, o cemitério, o hospital e uma fábrica de cerveja desativada.  Nunca mais esquecemos a animação da cidade e vamos rir dela para toda a vida.  Ainda bem que tinha jantar incluído no hotel.

No dia seguinte chegamos às Highlands.  Sempre achei que o nome era por causa de montanhas e não era.  São assim chamadas porque são as terras mais do norte, por isso mais altas.  E por ali conhecemos grandes gracinhas peludas e fortes, gado da raça Highland muito dócil.

O herói local é William Wallace, tornado mundialmente conhecido depois do filme “Coração Valente”.  Foi ele que comandou a resistência escocesa no fim do século XIII quando o rei Edward I quis subordinar seu povo à coroa inglesa.  Executado em 1305, sua luta foi assumida por Robert de Bruis, que depois se declarou rei da Escócia.  Ele logo pediu apoio ao Papa, que na Idade Média era o responsável por reconhecer e investir de poder todos os reis da Europa.  Assim surgiu uma nova dinastia real escocesa.

O castelo mais importante da região é o de Stirling e logo na entrada havia nos jardins uma apresentação de música de gaitas.  Já gosto do som delas, num palácio escocês então nem se fala.

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Um dos pátios internos do Castelo de Stirling.

No centro do palácio fica o Pátio do Leão, com apenas duas portas, e que era a residência destes animais.  Muitas vezes Stirling foi danificado e reconstruído, havendo ali uma mistura de estilos e materiais.  Sua imponência permanece.  Pelas salas, aproveitando a diversidade, muitas reproduções de estilos, hábitos e modos de vida.

A visita à cidade de Stirling foi terminada depois de um tempo na feira de sábado, com música e brincadeiras para crianças.  Seguimos para Glasgow, última etapa do roteiro.

Logo na chegada à Catedral de Saint Mungo – padroeiro de Glasgow – começou a algazarra.  Havia um casamento. A noiva em seu vestido branco decotado apesar do frio tinha um buquê de flores negras.  Os homens todos trajavam kilts, inclusive o pequeno pajem.  Fizeram questão de serem fotografados, foram gentilíssimos e várias pessoas do grupo fizeram questão de deixar claro que achavam os kilts e seus acessórios muito elegantes e orgulhosos.

C7 Casamento em Glasgow

A elegância do kilt.

O circuito pelas ruas da cidade deixou claro a melancolia daquela que fora uma cidade próspera e rica durante a Revolução Industrial e agora estava meio falida.  Era evidente o abandono de edifícios preciosos, fechados e decadentes.  Muitos destes edifícios e o grande relógio de Charing Cross eram feitos numa pedra avermelhada e que agora mostrava o abandono e descuido.  Como na maioria dos dias, a neblina e uma chuvinha fina estavam presentes.  Isso devia piorar a impressão.

O governo tinha absoluto conhecimento da situação da cidade e para ajudar sua economia determinou que todo o uísque produzido no país devia ser enviado a Glasgow ainda em barris e só então seria classificado, envazado e exportado.

Meio decepcionadas com a cidade, resolvemos fazer um opcional a New Lanark no dia seguinte.  Boa decisão.

New Lanark foi uma cidade criada como experiência de trabalho e previdência social entre 1800 e 1825.  Tudo começou quando David Dale construiu o complexo de tecelagem em 1785, durante a Revolução Industrial, utilizando energia hidráulica do rio Clyde.   Em 1800 Robert Owen assumiu sua administração criando residências, cooperativa, assistência médica, escolas, creches e proibiu o trabalho infantil.

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Vista geral de New Lanark e o rio Clyde.

Apesar das mudanças na matriz energética, o complexo funcionou até 1968, quando foi abandonado.  Depois de restaurada, a experiência social de New Lanark foi tombada como Patrimônio Mundial.  Agora funcionava como museu e as antigas residências, modernizadas, voltaram à sua função.

De volta a Glasgow para o último almoço de frango e batatas, decidimos ficar ali pelo centro comercial, aberto aos domingos.  A economia da cidade girava em torno desse comércio, muitas vezes tocado por imigrantes de ex-colônias no Oriente.  A chuva não perdoou e acabamos passeando pouco e entrando em muitas lojas e galerias.

C9 Charing Cross Mansions

Charing Cross Mansions, outrora residências elegantes, na época com lojas populares e partes danificadas.

Nossa última manhã escocesa foi para explorar os arredores do hotel.  Sempre a percepção fácil do abandono do que havia sido grandioso.  A cidade é linda e merece recuperar-se.

Naquela tarde embarcamos para a Inglaterra, para uns dias de atividades por nossa livre escolha.

Quando fomos escolher hotel em Londres, preferimos ficar perto da estação de Paddington.  Mas não procuramos de qual aeroporto seria mais fácil chegar até ali.  Para sair da Escócia pedimos um voo que nos deixasse no aeroporto mais perto do centro.  Grande bobagem.  Ficamos dependendo de taxi, numa cidade de trânsito muito organizado mas intenso enquanto que se tivéssemos escolhido Heathrow teríamos um trem direto à nossa estação, a um quarteirão do hotel.  É errando que se aprende para não esquecer.

Era mais um hotel de antigos prédios conjugados, e novamente saímos arrastando malas e brigando com as escadinhas nas emendas entre eles.

Precisávamos providenciar passeios e ingressos.  O ônibus hop on hop off parava em frente do nosso hotel, este era fácil.  Já tínhamos decidido por tour local até Stratford-upon-Avon, Oxford e Castelo de Warwick, e outro dia seria Castelo de Windsor, Bath e Stonehenge.  Havia dúvidas se iríamos até Salisbury ou Brighton ou Liverpool e afinal não fomos.

Para o dia da chegada já tínhamos comprado ingressos para ver “Billy Elliot”.  E quase perdemos a apresentação.  O avião atrasou, pegamos trânsito até o hotel.  Banho e troca de roupa rapidamente e mergulhamos no metrô, que estava funcionando precariamente por causa da chuva da véspera que tinha alagado algumas estações.  Estação de Paddington só ia enchendo de gente e nada de transporte.  Aquela voz horrorosa do sistema de alto-falantes era difícil de entender e acabamos pedindo ajuda a uma moça.  Ela por acaso ia para uma estação próxima do nosso destino e ia ser nossa guia já que os passageiros seriam remanejados para outras linhas e teriam que fazer baldeação já que algumas estações foram fechadas para manutenção e limpeza.  Quando soube que éramos brasileiras mostrou seus pés com sandália Havaianas.  Explicou que era costume na cidade as moças trabalharem de sapatos elegantes mas irem e voltarem de “flip-flop”, menos cansativas.

Enfim chegamos e deu tempo de comer um sanduíche num fast food em frente.  O que foi providencial, na saída vimos tudo fechado.

Nosso primeiro dia completo em Londres começou debaixo de chuva.  Mas isso é parte de Londres.  É turístico.

Não via Londres há muitos anos e era a primeira vez de Marilza por lá.  Portanto era fazer o básico.   Começamos por Trafalgar e arredores.  Seguimos para a Igreja de Saint Margareth, mais conhecida por Abadia de Westminster onde quis visitar Charles Darwin.  Roda gigante London Eye.  Covent Garden.  Passeio de barco pelo rio Tâmisa e desembarcando na Ponte de Londres.  E foi aí a primeira besteira.  Distraída e sem contar nessas horas com a orientação geográfica de Marilza, voltamos ao ônibus para continuar circulando pela cidade quando percebi que tínhamos passado ao largo da Torre de Londres.  Perdemos um tempo precioso dando o retorno.

D1 London Eye, Aquarium e Tâmisa

Na ponte de Westminster tendo ao fundo a London Eye, o aquário e o rio Tâmisa.

Durante nossas caminhadas Marilza deu a ideia de irmos a outro musical.  Fomos buscar algo leve e escolhemos “We Will Rock You”, com as músicas do Queen.  Voltamos correndo ao hotel para nos arrumarmos e pegamos o metrô até o teatro, nesse dia sem problemas.  Adoramos e pulamos muito no final, que é quase uma festa.

No outro dia fomos ao velhíssimo castelo de Warwick, cuja presença vem de meados do século XI.  Mas ele se torna peça chave da História em 1451.  E todas as explicações estavam na exposição “Kingmaker”.

As casas de York (Eduardo IV) e de Lancastre (Henrique VI) disputavam o trono inglês, no que se chamou Guerra das Rosas, já que ambas as famílias tinham rosas como símbolo, sendo uma branca e outra vermelha.  Richard Neville, o senhor de Warwick, era aliado dos York, mas se sentiu desprestigiado e se aliou aos Lencastre.  Foi em seu castelo que planejaram uma das maiores e decisivas batalhas e onde ele foi morto.  Vários revezes aconteceram e ao final assumiu um novo rei, iniciando a dinastia Tudor com Ricardo III em 1485.  Casou-se com uma Lencastre e a união das duas rosas criou um novo símbolo floral representando essa união.

D2 Castelo de Warwick com fosso

O imponente Castelo de Warwick e seu fosso, agora um gramado.

A visita a Warwick é repleta de referências e reconstituições de eventos em diversas épocas, o que fica bem interessante para quem gosta de História.  Até festas são reproduzidas.

Seguindo as estradas, passamos pelos Cotswolds.  Lindo, mas monótono demais para mim.

Claro que em Stratford-upon-Avon o objetivo é conhecer a casa de Shakespeare e seus arredores, mantidos como no seu tempo.

E o passeio terminava visitando algumas das casas de Universidade de Oxford, com bonitos recantos e incríveis figuras humanas e de animais.  Um lugar que merecia mais um tempo.

De volta a Londres, ficamos nos portões do Palácio de Buckingham.  Eu já tinha avisado que não ficaria espremida para não ver pela terceira vez a troca da guarda.  Se Marilza quisesse podia ir e nos encontrávamos depois.  Ela não quis, então aproveitamos a tarde e fomos ver o palácio sem tumulto, o grande monumento à Rainha Vitória e o parque Saint James.

Outro dia para Londres.  Começamos indo de trem ao Jardim Botânico de Kew Gardens.  Mais que bonito, curioso e relaxante.

D3 Kew Gardens

Uma das áreas de descanso em Kew Gardens, um grande passeio.

Na volta para a estação de trens quis experimentar o cartão bancário para fazer saque em moeda estrangeira.  Não precisava mas queria aprender e ver valor de taxas, coisas assim.  Na máquina uma mensagem que dizia para eu procurar minha agência.  Como era uma caixa na rua, não estranhei.

Eu queria conhecer a igreja dos Cavaleiros Templários em Londres.  Tivemos que caminhar um pouco e se não tivesse pedido ajuda iria passar por ela várias vezes sem ver.  Ela fica num jardim interno, mantido por uma organização de advogados.  A entrada para o jardim é uma pesada porta de madeira na Fleet Street, bem perto do Dragão.  Gostei, mas esperava algo mais soturno, escuro e medieval.

Temple Church

Interior da Temple Church.

Comemos nem sei o que por ali mesmo.  Do outro lado da rua vi um símbolo conhecido, do banco que eu tinha tentado usar o cartão.  Fui numa de suas máquinas automáticas e deu a mesma mensagem.  Tentei outra máquina e deu igual.  Nem tentei falar com ninguém da agência.

Saindo dali, passamos por uma igreja anglicana, Saint Martin within Ludgate.  O que Marilza não tem paciência de ver igrejas, eu tenho de curiosidade.  Estiquei o pescoço para dentro e fui recebida com uma mão e um sorriso.  Era um dos membros da congregação nos convidando.  Entramos.  Lindinha.

Próxima etapa era lá no final a Catedral de São Paulo.  Paguei meu ingresso e ainda ganhei um desconto por idade de uma bilheteira brasileira.  Marilza negou-se a pagar ingresso para ver igreja.  Combinamos de nos encontrar no hotel para sairmos para passeios e compras no fim da tarde.

Àquela altura da viagem não tinha mais folego para subir até a cúpula.  Fui até onde deu.  Grandiosa como Westminster e completamente diferente.  Clara, ventilada, mais alegre.  Na saída encontro Marilza sentada me esperando.

Tarde para encarar Oxford Street e suas lojas tentadoras.  A quantidade de gente na rua era incrível e para não nos separarmos arrastadas pelas ondas de pessoas nos cruzamentos foi complicado.  Já era mais tarde e não me lembro em qual das grandes lojas nós duas nos perdemos; superamos as ruas e sucumbimos no interior do magazine.

Loja fechando, olhei pelas portas, o que era inútil pois tinha vários lados.  Peguei o metrô, jantei já perto do hotel e quando cheguei ao quarto ela já estava lá.  Claro que também tinha olhado as portas e desistido pelo mesmo motivo.  Jantou e voltou ao hotel.

Nosso programa seguinte incluía o Castelo de Windsor, a cidade de Bath e o místico Stonehenge.  A visita do castelo foi em parte guiada e com bastante tempo livre, suficiente para conhecer razoavelmente bem; afinal ninguém será capaz de conhecer bem um castelo daquele tamanho nem em meses.

Cast Windsor

Caminhando pelos gramados entre os pavilhões do Castelo de Windsor.

Em Bath a visita se limitou aos antigos banhos romanos, mas era um lugar que também mereceria mais tempo, caminhar pelas ruas simpáticas que apenas vimos do ônibus e pelos jardins charmosos.

Grandes Banhos

Os muito bem preservados banhos romanos em Bath.

Chegamos a Stonehenge com a chuvinha de sempre.  Lugar bonito pelos seus mistérios construtivos.  Nem posso dar palpite no lado místico porque sou uma nulidade no tema.  Mas impressiona pela dimensão da construção.

Pernas acabando, jantamos num hotel perto do nosso.  As malas nos esperavam.

Tínhamos a última manhã livre e fomos para Baker Street para as referências do fictício endereço de Sherlock.  Entramos no Museu de Cera, que é sempre diversão garantida.

MM Tussaud

Encontrei com Sean Connery, não interessa se é de cera.

Seguimos para uma caminhada por Regent Park, uma espécie de despedida dos famosos jardins ingleses.  As pernas sabiam que era dia de voltar para casa e protestavam furiosamente.

Queen Mary's Garden no Reg Park

Queen Mary’s Garden em Regent Park.

Forçamos nossos limites para pelo menos vermos a Harrods.

Ainda tentamos ir a uma parte gratuita do Museu Victoria and Albert que abrangia Ásia Central mas não aguentamos mais e só vimos umas duas ou três salas.  Paramos e aproveitamos para comer.

De volta ao hotel usamos os sacos de lixo grandes que eu tinha levado (nem eu sei de onde me veio essa ideia) para proteger as malas da chuva e saímos rebocando a bagagem por um quarteirão até a plataforma do trem para o aeroporto de Heathrow.  As horas de voo serviram para recuperar um pouco as pernas exaustas.

Voltamos cheias de paisagens novas.  Foi uma viagem que, fora o problema do hotel em Dublin, não teve nada funcionando errado.  Descobrimos que nem todas as ovelhas são iguais, que existem mais cervejas na Irlanda que apenas a famosa Guiness, que houve muita disputa e guerras nas dinastias britânicas.  A neblina tradicional estava lá, Nessie não apareceu, os gigantes não brigaram, eu levei um tombo, Marilza continua não gostando de visitar igrejas e chovia em Londres.  Tudo conforme o prometido.  Não teve nenhum caso engraçado, daqueles de muitas risadas, para contar.  Frango e batatas foram abolidos das refeições por um bom tempo.

Voltamos cansadas como em poucas vezes porque aproveitamos tudo, exploramos muito e nos divertimos plenamente.

2008 (abril) – Et vive la France

Estava escolhendo um país na Europa para explorar com mais detalhes.  Escolhi a França, por ser um destino onde poderia usar milhas da empresa aérea brasileira que já se sabia que ia acabar.  Tinha tantas milhas que davam ida e volta na classe executiva.  O resto seriam deslocamentos em trem, um pacote de três dias e um trecho aéreo doméstico.

♣  O roteiro: A base de operações seria Paris.  Daí partiria para os Castelos do Vale do Loire, Colmar, Estrasburgo, Carcassone e o que mais estivesse ao alcance.  Dias de turismo por minha conta, excursões e um pequeno pacote com operador local.  Quase tudo foi escolhido, já deixado contratado e pago daqui.  Foram boas escolhas, apesar de não ter sido tudo como eu queria.  Eu tinha o mês de abril para viajar por causa da companhia aérea, mas algumas opções de roteiros mais abrangentes ainda não estavam em catálogo.  Seria o meu ano na França.

A saída do Rio de Janeiro foi retardada por uma chuva torrencial.  Sem ter conexões, nada a preocupar.  Cheguei a Paris, fui de ônibus até o centro.  Meu hotel ficava junto da estação de metrô Saint Georges, mas carregando malas e sabendo que a estação só tinha escadas, optei pelo taxi.

Com a chegada mais tardia que o previsto, começando a escurecer, apenas me alojei, larguei a bagagem e fui procurar um bistrô para jantar.  Só na volta iria mexer em mala.

Comidinha leve e gostosa, hora de cuidar da bagagem.  Cena trágica, encontrei quase tudo molhado lá dentro.  O material do revestimento era cor mostarda, e diversas roupas estavam manchadas de amarelo.  A chuva tinha encharcado a mala, a água dissolveu a tintura e as roupas viajaram horas manchando.  Voltar ao aeroporto para reclamar, não adiantava; reclamar na volta ao Brasil, para mostrar manchas que já seriam antigas, adiantaria menos.  Respira fundo, lava o que for possível enquanto está úmido, as manchas que não saírem deixa para tentar de novo em casa e compra o que for preciso para repor.

Meu primeiro dia em Paris foi procurando um casaco mediano, já que a aplicação em branco do pulôver ficou horrível, e mais uma ou outra blusa que agradasse.  Enquanto passeava até o parque Tuilleries, consegui o que precisava nas lojas ali perto.  Não ia ficar procurando nem escolhendo muito, seria perda de tempo e sou ruim de compras.  Meti as compras na mochila e segui caminhando pelo parque.

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Nas Tulherias, vendo a Torre Eiffel e pronta para caminhar pela Champs Elisées.

 E fui embora pela Champs Elisées até chegar ao Arco do Triunfo.  Eu não sabia que a face voltada para essa avenida era uma referência ao hino frances, La Marseillaise.

As pernas que ainda restavam, usei nas escadas para ver lá de cima as avenidas que formam a “Étoile”, doze avenidas com nomes de militares ou de batalhas, como a famosa e cara Avenue Foch (Ferdinand Foch, herói na Primeira Guerra Mundial).

Jantei por ali mesmo, num daqueles restaurantes que servem menu turístico.  Não precisa pensar nem gastar muito.  Esperei as luzes acenderem, pontualmente às 21 horas.  E voltei de metrô para o hotel.  Merecia descanso e precisava ver como ficaram as roupas depois de lavadas e secas.  O pulôver continuava manchado, mas seria necessário carregar; se precisasse, se alguém reparasse, dava-se uma explicação.

Domingo era o dia do meu passeio já agendado a Giverny.  Antes, uma passagem por Auvers sur Oise onde Vincent Van Gogh viveu seus últimos anos e pintou várias paisagens.  Houve visita ao seu túmulo e do irmão, Theo. Interessante que foram colocadas fotos das pinturas nos locais que seriam o ponto de vista do pintor.

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Igreja de Nossa Senhora de Auvers e a reprodução do quadro que a retrata.

Ainda houve um tempinho no centro da cidade, mais sonolenta ainda num domingo nublado.  Na avenida Charles de Gaulle fica o museu instalado no antigo Auberge Ravoux, onde morou e morreu Van Gogh.

Depois a visita ao Museu de Arte Americana ou Museu Terra., com um tempinho para comer.

Finalmente a casa e os jardins de Monet.  A sensação é de estar passeando numa pintura.  Não era a melhor temporada das flores e ninfeias, mas é uma visita genial.

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Casa de Monet e suas flores.

E foi bom ter ido numa excursão local, pois na época o transporte para lá estava bem desorganizado.  Houve tempo suficiente para visitar a casa e passear sem pressa pelos famosos jardins.  Ou será que passeava pelas pinturas?

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Difícil explicar a familiaridade com essa ponte, tão frequente nas pinturas de Monet.

Soube lá que ele se submeteu a cirurgia de catarata, já relativamente segura nos anos 1920.  Não deve ter sido nada fácil, mas sua vontade de continuar pintando deve ter sido decisiva.

À noite, de volta a Paris, fui jantar no Leon de Bruxelles, na filial da avenida Champs Élysées.  Festa de mariscos na panelinha.  Ou se preferir, francesamente falando, panelinha vira cocote.

O outro dia em Paris tinha um roteiro previsto, tudo de metrô, que é eficientíssimo, anda-se para todos os lugares com ele, há sempre uma estação próxima de onde se quer chegar e a conexão de linhas é fácil.

Não fui a show de Lido nem similar, mas queria ver o Moulin Rouge durante o dia e encontrei uma das estações de metrô que preservam aquele charmoso e antigo letreiro de ferro.

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O tradicional moinho vermelho.  Mais bonito em frances – Moulin Rouge.

Dali segui para o cemitério de Père Lachaise, e na entrada há disponível um mapa com os túmulos mais procurados.  Fui buscar Jim Morrison, Hausmmann e Oscar Wilde, este coberto de marcas de batom dos beijos que recebe.  Vi muitos outros mais.

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Túmulo beijado de Oscar Wilde.

Já no caminho da saída vi um grupo limpando um local, enquanto ouviam música.  No meu péssimo frances perguntei quem estava ali.  Responderam que era Gilbert Becaud, e quando complementei “ah, o cantor de Et Maintenant” fui abraçada e beijada pelo pessoal de seu fã clube.  Fizeram questão que eu tirasse uma foto delas (junto do túmulo, é claro) para trazer ao Brasil.

Se podemos falar assim, é um cemitério animado.

Fui ver a torre Eiffel, talvez subir, dependendo do tamanho da fila.  Desabou uma tempestade, com direito a bolotas de granizo.  Meu abrigo foi uma cabine telefônica, que acabei compartindo com uma moça e seu filho pequeno, atordoada por não conseguir proteção.  Tudo muito espremido mas sem danos.  A subida da torre foi interrompida, e resolvi fazer o passeio de barco pelo Sena, que há muitos anos atrás tinha feito à noite.  Uma anotação em minhas fotos é que descobri neste dia que na França há rios femininos e rios masculinos.  O Sena é feminino.  Não há razão lógica de tamanho nem importância, apenas tradição.  Mas ficou a sensação de tarde perdida.

Depois de jantar, fui com meu bilhete de metrô, que também serve para o trem RER, até o Palais de Chaillot, em Trocadero.  O local é escuro, parece meio assustador; porém, com a vista que oferece para ver a torre Eiffel iluminada, fica cheio de turistas e camelôs, perfeito.  Eu gosto muito desta paisagem.

O metrô é sujo, descuidado e o lixo é persistente.  Todos os dias descia pelas escadas em frente ao hotel, comprava meu bilhete diário – a moça da cabine já me cumprimentava – e encontrava todos os dias os mesmos papeis nos mesmos cantinhos.

Tive a triste ideia de voltar a Versalhes.  Minha mãe insistiu tanto que eu fosse lá que acabei indo.  Cheio demais, gente empurrando, ficando na frente das fotos alheias, uma fila de dar voltas para ir a um único banheiro.  Versalhes pode esquecer de mim, não volto.  Lindo, mas não volto.

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Nos jardins de Versailles.

À tarde fui com turismo local a Chartres.  A visita é exclusivamente à Catedral de Notre Dame de Chartres, onde os vitrais têm um tom de azul tão especial que leva o nome da cidade.  Foi bom ter ido com guia, eu jamais perceberia os detalhes pagãos e símbolos místicos, inclusive os signos do zodíaco e referências mitológicas.  Beleza sobrando, claro que seria uma boa visita, mas quanto aos detalhes escondidos, o leigo só vê quando mostrados e ainda assim alguns são difíceis de perceber.

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Catedral de Chartres e suas figuras góticas.

A principal destas referências e um dos marcos da igreja é um labirinto em pedras, com mais de 250 metros, usado por monges e peregrinos meditando enquanto caminham sobre ele, já que o lugar faz parte de um dos Caminhos de Santiago.  Dentro da Catedral é permitido fotografar sem flash, mas a luz não ajudava.

Essa catedral foi concluída em 1260; tem uma torre piramidal com 105 m de altura.  A outra, em estilo gótico flamejante, aquele bem cheio de desenhos e recortes, tem 113 m.  Segundo a lenda, desde 875 guarda a túnica da Virgem Maria, trazida de Jerusalém pelo rei Carlos Magno.  Vários incêndios destruíram as edificações anteriores sem danificar a relíquia.  Das 3 rosáceas de vitrais, a do norte foi presenteada pela rainha Blanche de Castilla (mãe de Luis IX, canonizado São Luis) em 1230 e representa a Glorificação da Virgem.  O edifício nunca foi danificado nas diversas revoluções havidas no país.  E o azul de Chartres é realmente diferente.

Mais um dia circulando por Paris, desta vez para subir a Torre de Montparnasse que não conhecia.  Troquei uma torre por outra.   O prédio moderno é um espantalho, a vista da cidade é boa.  E dali parti para um circuito de igrejas.

Primeiro foi Saint Sulpice, cenário de “O Código Da Vinci”, com a sua Linha Rosa, o antigo meridiano que dividia o mundo antes de ser adotado Greenwich, e o gnomom de São Hipólito.  Ainda bem que está explicado lá que gnomones são instrumentos criados para medir a altura do sol através da sombra formada e a Igreja Católica usava para calcular as datas das festas religiosas.  Provavelmente a igreja católica nega mas é um lado pagão que lembra calendários romanos, incas ou maias, baseados em astros e fenômenos naturais.

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O marco branco cortado pela Linha Rosa, que se prolonga pelo chão.

Seguindo a pé, fui para Saint Germain des Pres.  E merecia um chocolate no Café Deux Magots.

Continuando a quase via sacra, Notre Dame de Paris.  Sempre lotada.  Sempre bonita.  Sempre protegida pela enorme figura do Imperador do Sacro Império Romano Carlos Magno (747 a 814).

Foi a primeira vez que tive tempo de rodear o templo, ver seus detalhes, seus arcobotantes e seus relevos.  Pena que muitas das gárgulas estavam bem danificadas.

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Os arcos e os desenhos pelo lado menos conhecido de Notre Dame de Paris.

Pausa na religiosidade para desfrutar uns momentos nos Jardins de Luxemburgo.  Neste dia de tantas igrejas, Marilza (amiga que às vezes viaja comigo) já teria me matado.

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Jardins de Luxemburgo para descansar de um dia todo a pé.

E à noite, para completar o tour sacro, o bairro de Montmartre e a Basílica de Sacre Coeur.  Subi de plano inclinado, também do meu bilhete diário de transporte.  Nas escadarias tem música, acrobacia, camelôs e muito vinho que a turma jovem bebe direto da garrafa.  Os artistas de rua, especialmente os caricaturistas, estão lá na praça.  Quase fui posta para fora da igreja porque tentei tirar uma foto.  E foi por lá mesmo que jantei.

As luzes se acenderam e a cidade ganha uma vida diferente.  Para voltar, usei o pequeno ônibus de motor elétrico que desce pelas ladeiras cheias de curvas até quase em frente ao Moulin Rouge.  Tomei um susto quando vi a turma que se espalhava por ali.  Desci para o metrô e fui para a área tranquila do meu hotel Lorette.

Sou fã de Asterix, Obelix e sua turma.  Morria de vontade de conhecer o Parc Asterix, nos arredores de Paris.  Descobri que o acesso era meio complicado e mais uma vez optei pelo turismo local.  Passei o dia no parque, me enchi de sanduíches franceses, andei num monte de brinquedos, me molhei toda no toboágua e tive que ficar um tempo secando ao sol, sentindo um pouco de frio porque nem estava tão quente assim.  O parque tem uma parte dedicada a crianças bem pequenas.

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Passeando nos barco junto de Obelix.

Na volta, o desembarque era no subsolo do Louvre, e minha ideia era jantar no Carroussel.  Só que estava fechado.  A fome era grande depois de um dia brincando.  Passei por um restaurante que achei simpático, com um jeitinho Art Nouveau.  Entrei e quando ultrapassei a segunda porta quase voltei de vergonha.  Eu estava toda amarrotada depois de secar ao sol, o cabelo bem arrepiado.  E o local era frequentado por gente bem mais elegante que o meu aspecto.  Não me dei por vencida.  Sentei, pedi um vinho e um risoto, regalei-me com o jantar.  Paguei a conta ao final e saí de fininho.  Se alguém notou meu estado quase deplorável, nunca mais ia me ver mesmo.

Precisei acordar cedo no dia seguinte.  A mala grande ficou no hotel e saí puxando minha maletinha.  Comprei bilhete de uma só viagem no metrô e desci a escada suja de sempre.  Quando cheguei na plataforma vazia não sabia onde me meter nem para onde olhar, já que dois rapazes faziam sexo na plataforma oposta.  Meu trem não demorou muito e eles continuaram lá.  Neste dia começava o pacote de quatro dias para visitar Mont Saint Michel e alguns castelos do Vale de la Loire, outro rio feminino.

O começo foi em Saint Michel, uma abadia sobre um rochedo com todos os ingredientes para não ter inveja de “O Nome da Rosa”.

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Minha primeira visão de Mont Saint Michel.

Mas antes da visita houve o almoço.  Foi explicado que seria servida uma espécie de omelete tradicional, feita com ovos muito batidos mas pouco cozidos.  Uma das turistas, mesmo assim, fez um escândalo por causa do ovo cru que lhe deram.  Ninguém conseguiu fazê-la acalmar, levantou-se e foi esperar no ônibus.

A abadia não tem tantos elementos de sua velha ornamentação e altares, ela é apenas imponente e forte. Criada por um bispo, recebeu monges beneditinos no século X, quando a vila do entorno cresceu.  Resistiu à Guerra dos Cem Anos (1337 a 1453, portanto mais de cem) contra os ingleses.

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Claustro de Saint Michel, conhecido como “A Maravilha”.

A abadia é do século XI e desabou em parte no século XV, sendo logo reconstruída.  Com a dissolução religiosa depois da Revolução Francesa, seu rico acervo desapareceu e as instalações viraram prisão.  Foi declarada Patrimônio da Humanidade em 1979.

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Da antiga vila no entorno da abadia às lojas de suvenires.

Não dá para descrever cada castelo, cada jardim.  Cada um tem seu jeito, alguns ainda são usados como residência permanente e a família abre para visitação, o que é uma forma de arrecadação para ajudar a manter aquelas propriedade caríssimas.

Por causa de guerras religiosas, a corte se mudava com frequência e daí foi surgindo a quantidade de castelos pelo vale do Loire.  Primeiro passamos por Saumur, com um parada junto da ponte para fotos do castelo.

O primeiro visitado foi o Castelo de Langeais, construído por ordem do rei Luis XI em meados do século XV.  Seu último proprietário o comprou em 1886, recuperou e buscou mobília de época para seu interior.  Sem herdeiros, deixou-o para o Instituto da França.

Seguimos para Amboise.  O castelo que leva o nome da cidade fica junto do rio Loire, no centro antigo.  Por ali descobri lojas de balas lindas.  Não sou fã de balas, apesar de gostar muito de doces, porém essas eram irresistíveis.

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Castelo de Amboise, no centro antigo da cidade.

Nos arredores fica o outro castelo, talvez mais divulgado, o Clos Lucé.  Foi construído em 1471 pelo mordomo de Luis XI. Em 1490 foi comprado pelo rei Carlos VIII, que passou a usá-lo como residência de verão.  Ali morou Leonardo da Vinci a partir de 1516, a convite dos reis franceses após ter problemas na Itália; dizem que foi ali que concluiu sua Monalisa.  Pode ser mais famoso, mas preferia ter visitado o outro.

O dia terminava e ainda tinha os jardins do castelo de Villandry, que foi meu encanto do roteiro.

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Jardins formais de Villandry.

É residência de uma família, com jardins abertos à visitação.

Além dos jardins geométricos e um pouco de labirintos, há uma parte que segue a tradição religiosa que algumas famílias adotaram desde a Idade Média, os jardins de legumes e verduras fazendo desenhos coloridos.

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Não deve ser nada difícil morar aqui rodeado desses jardins.  Deve é custar muito caro.

E foi dele que tirei mais fotos, encantada com suas simetrias e desenhos, misturando flores com repolhos, ervas medicinais com alimentos.

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Canteiros com legumes coloridos, ervas medicinais e folhagens alimentícias.

Essa tarde terminou no simpático centro velho de Tours.  Na realidade é um grupo de edificações que não foram totalmente destruídas durante a Segunda Guerra e que foram transferidos para ali, formando a praça.

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O centro recriado em Tours.

E no meio da caminhada, uma figura curiosa e simpática olhando os turistas de todo mundo passarem por ali.

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O reizinho vendo as pessoas do alto de sua sacada.

Uma pena que o hotel era longe da cidade, na saída para a rodovia.  Tours tinha jeito de bons momentos de lazer.

E chegamos ao último dia de passeio.  Faltavam duas estrelas famosas.

Acredito que ninguém conheça todos os castelos do vale, mas certamente entre eles se destaca Chenonceau, o Castelo das Sete Damas.  Vale repetir a história que ouvi.

Sua construção em 1513 foi orientada por Katherine Briçonet, mulher do proprietário Thomas Bohier.  Por causa das dívidas, perderam-no para a família real.  O rei Henrique II presenteou-o à amante Diana de Poitiers em 1547, que amplia e constrói a ponte de arcos sobre o rio Le Cher.  Com a morte de Henrique II, assume a regência Catarina de Médici.  Catarina retoma e amplia o castelo, dando-lhe o andar superior.  Em 1589, Louise de Lorraine-Vaudemont recebe aí a notícia do assassinato de seu marido o rei Henrique III, e torna-se a “Rainha Branca”, cor do luto àquela época, até sua morte.    Em 1624, o rei Henrique IV o presenteia para sua amante Gabrielle d’Estrées.

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Castelo de Chenonceau com as arcadas construídas por Diana de Poitiers sobre o rio Cher.

A sexta dama foi Louise Dupin, que o salvou da destruição na Revolução Francesa.  No século XIX pertenceu a Madame Pelouze, a última das sete damas que o administraram.  Desde 1913 é propriedade da família Menier, importante produtora de chocolates franceses.  Os jardins decorados foram reconstruídos conforme plantas do período de Diana de Poitiers.

O castelo seguinte foi apenas visto na área externa, toda verde e sem flores ou plantas coloridas, de Cheverny.  É residência da família Hurault desde 1620.

Nunca foi um castelo da realeza, mas de conselheiros e oficiais do rei.  Não é permitido fotografar e internamente vem sendo modificado e modernizado pelas sucessivas gerações.  Não há flores, apenas grandes gramados e árvores.

No centro da cidade de Cheverny, junto da igreja de Saint Etienne, vi um canteirinho de flores que chamou minha atenção.  Flores negras, bem negras.

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As pequenas flores negras.

Depois do almoço o último castelo, Chambord.  Silhueta inconfundível, nome de um modelo de carro frances, foi construído para ser um pavilhão de caça a partir de 1519 pelo rei Francisco I, é o mais exagerado de todos os castelos do Vallée de La Loire, com 77 escadas e 282 chaminés.

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Torres de Chambord.

Seus sucessores também gostavam de caçadas e concluíram a obra.  Não tinha mobiliário próprio – cada rei que se deslocava para caçar, levava e retornava à corte com todas as peças.  O deposto rei Stanislas da Polônia, sogro de Luís XV, residiu nele entre 1725 e 1733.  Sua escadaria principal em espiral dupla pode ter sido projetada por Da Vinci, que morrera pouco antes do início das obras.

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Há um certo excesso de detalhes em Chambord.

Como em outras edificações da época, foi usada pedra calcária macia chamada tufo, mas em quantidades e formas enormes e rebuscadas.  Não há duas torres iguais. Classificado como propriedade nacional, somente o presidente da França que tem direito a caçar nos seus 5.440 hectares cercados por muros, o maior parque florestal fechado na Europa.

O passeio terminou em Paris.  Voltei de metrô ao mesmo hotel, afinal, a bagagem estava lá.  Para jantar, comprei lanche na Paul, que adoro.  Há lojas em estações de trem ou algumas de metrô e muitas vezes inclui um belo e saboroso sanduíche, uma sobremesa e uma bebida.

Mais um dia inteiro para fazer o que quisesse em Paris.

Comecei meio tarde e fui direto à Sainte Chapelle.  Para ela só me lembro de uma palavra: magnífica.  Sainte Chapelle foi erguida em dois andares entre 1242 e 1246 por ordens do rei Luis IX para guardar as relíquias da coroa de espinhos de Jesus que comprara em 1239 do rei Balduíno II de Constantinopla.  O rei Luis IX participou da 7ª e 8ª Cruzadas, morreu em 1270 em Tunis e foi canonizado como São Luis.

 

 

Capela Alta.

A Capela Baixa é dedicada à Virgem, enquanto as relíquias ficavam na Capela Alta, a capela real.  É um dos dois únicos edifícios restantes do palácio dos reis franceses entre os séculos X e XIV.  Como símbolo da realeza, foi saqueada durante a Revolução Francesa e parte das relíquias se perdeu.  Sua recuperação foi iniciada em 1846.  É considerada obra prima da transparência do estilo gótico com vitrais substituindo paredes na Capela Alta, sendo que dois terços deles são originais, apesar de revoluções e guerras.  É preciso sentar um pouco no andar de cima para poder respirar e olhar para cada lado, cada cor.

Fui dali para umas modernidades meio feiosas, talvez porque não combine com o conjunto tradicional de Paris.  Fui até o Arco de la Defense.

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Achei que a Pirâmide do Louvre fosse mais esquisita, de tanto que li e ouvi falar mal dela.

E para não dizer que não estive lá, fui conhecer a Pirâmide do Louvre.  Confesso que não tinha intenção nenhuma de ficar horas na fila para entrar no museu.  Já tinha desistido dias antes de ver uma exposição sobre Maria Antonieta, nem lembro se era no Grand ou no Petit Palais, mas duas horas de fila me expulsam de qualquer programa.

Fui para as Galeries Lafayette e terminei meu dia por lá.  Hora de voltar ao hotel, reorganizar bagagem e preparar tudo para o próximo passeio.

Saí cedo do hotel para a Gare de L’ Est.  Seguia para Nancy com o objetivo de ver uma praça famosa e nem de longe imaginava que seria uma tremenda praça, daquelas de cair queixo.

Viagem tranquila, desembarquei e fiz um pouco de trapalhada até descobrir onde ficava o depósito de bagagem.  Arranjei um mapa e saí caminhando.  A avenida que escolhi não dava boas impressões iniciais sobre a cidade.  E quando a rua acabava, dava para ver um portão.  E aí começava a surpresa.

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A estranha primeira impressão de Nancy.

A Place Stanislás é um grande espaço cercado com grades negras com decoração em relevo a ouro.  Quando o rei Stanislás I Leszczynski da Polônia (o mesmo que morou em Chambord) foi destronado em 1737, o rei de França Luiz XV deu-lhe de presente o Ducado de Lorena, onde fica Nancy.  Afinal, seu sogro merecia um presente.

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Grades e fontes da Praça Stanilas, um luxo.

Uma grande área que separava as partes da cidade serviu para a praça que foi criada, tendo como principal arquiteto Emmanuel Héré de Corny.  O espaço deveria ser magnífico, já que estava sendo criado em honra de seu genro.

No entorno foram erguidos prédios administrativos, até hoje mantendo este uso.  As obras se estenderam de 1752 até o final de 1755.  As grades foram criadas por Jean Lamour e as fontes foram de Barthélémy Guibal.  Algumas estátuas ocuparam o centro da praça até que em 1831 foi colocada a do rei Stanislás, que passou a dar nome a ela.  Depois de ter sido usada como estacionamento, sua maior restauração foi em 2005, quando retornou ao aspecto do projeto do século XVIII.  Stanislás deve ter ficado satisfeito com o resultado, a praça é um esplendor e vale a visita.

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Detalhe de um dos portões.  Grades, luminárias e adornos são similares mas não iguais em toda a volta.

Caminhei ainda pelos arredores e resolvi desfrutar o sol e o lugar almoçando com vista para a praça.  Voltei por outro caminho, mais comercial e mais recente até a estação ferroviária e dali segui para Colmar, cidadezinha recomendada por uma amiga que conhece muito de França.  No caminho tive vontade de chorar, o tempo fechou e chovia torrencialmente.  Desceu uma neblina e pela janela não se via nada.  Eu só tinha aquele fim de tarde e a manhã seguinte em Colmar.

Desembarquei tão chateada que não percebi o hotel em frente a mim.  Quando pedi informação a uma mocinha que saia da gare com sua bicicleta ela apenas riu e apontou com a mão.  Ri sem graça e lá fui eu para a calçada em frente.

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Para justificar a vergonha que passei, fotografei a estação de trens da varanda do meu quarto.

Roupinha quente, hora de sair com chuva mesmo e conhecer um pouquinho da cidade.  No balcão perguntei como podia caminhar até o centro da vila e me indicaram a direção.  Podiam ter me dito que o ônibus parava em frente, não precisava tomar chuva.  E no meio da caminhada o guarda-chuva quebrou.  Ohhh alegria!

Cheguei ao pedacinho mais fotografado da cidade, a ponte sobre seu canal.  Olhei em volta e comecei a ficar mais animada.  Parou de chover, peguei as informações sobre o passeio de barco para o dia seguinte e fui para um bistrô ali mesmo.  Fui apresentada ao vinho branco da região e à Tarte Gratinée.  Que delícias.

Voltei pelo mesmo caminho, equilibrando o guarda-chuva quebrado.

No dia seguinte tive a informação do ônibus direto à maior loja de departamentos da cidade para comprar o bendito guarda-chuva.  Ainda comprei várias cegonhas de feltro para trazer de lembrancinhas.  E dali fui caminhar.

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Rue des Marchands.

Caminhar muito, passar sob arcos, ao lado de canais, de prédios seculares, de igrejas com cegonhas na torre.  A cidade é muito aconchegante, mesmo com a umidade que havia.

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Place de l’Ancienne Douane.

É fácil descobrir um dos edifícios mais típicos da cidade, a Casa Pfister.  Foi construída e sempre preservada por seus muitos donos.  Ficou conhecida pelo nome de seu quarto proprietário, que a comprou em 1840.  Faz alguns anos que é Monumento Nacional.

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Maison Pfister.

Passando por uma loja masculina, havia pulôveres de lã, lã mesmo, por dez euros. Eram os últimos 3 ou 4 que havia na loja, por isso preço tão bom.  Nem pensei duas vezes, comprei um, preto, meio sem graça mas perfeito para substituir o meu que não consegui tirar a mancha.

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Commenderie, o ponto principal da Petite Venise.

Colmar pode ser resumida: é uma gracinha.  Pequenina, dá para caminhar sem pressa em poucas horas.  Claro que mereceria mais tempo, que eu não tinha.

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Rue des Clefs, o centro comercial e bancário de Colmar.

Almocei por ali mesmo, voltei ao hotel, peguei a bagagem que já estava na portaria.  Atravessei a rua sem estar perdida e embarquei no trem para Estrasburgo.

Lá fazia um dia de sol.  Saí do hotel e fui seguindo as instruções para chegar à Oficina de Turismo.  Nem precisava.  Era só dizer para seguir a torre da catedral e a sala ficava na calçada oposta.  Queria fazer o passeio a Riquewihr, e consegui vaga para o dia seguinte.

A Catedral de Estrasburgo me pareceu bem diferente.  Foi inaugurada ainda na primeira metade do século XV e como era habitual de sua época, foi erguida com pedras e com seus arcobotantes perfeitos.  Em excelente estado de conservação aos meus olhos leigos, gárgulas restauradas em toda a sua feia formosura, cavaleiros e animais sem partes faltando.  Seu exterior é muito decorado, parecendo um bordado em pedra.  É tanto detalhe que o pescoço dói de tanto olhar; só que é impossível parar de olhar.

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Cavalos e seus cavaleiros, gárgulas e flores em pedra.  Uma fachada incrível na Catedral de Estrasburgo.

Entrei e aí estava a diferença.  Em seus vitrais dominavam os tons amarelados e alaranjados, o que dava uma cor pouco comum ao seu interior.  Fiquei parada, girando para ver todos os tons.  Decidi que voltaria em outro horário para perceber os efeitos da luz, rezando para não estar nublado.

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Cores quentes nos vitrais da Catedral.

Muitos turistas na cidade.  E caminhando para o rio, consegui saída na mesma hora para um passeio de barco pelo Ill.  E foi um dos melhores que já fiz.  Não era longo mas era diversificado, bem interessante, mostrando o melhor da cidade velha.  Cidades velhas geralmente cresceram nas margens de rios.

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Entrando numa das eclusas do rio Ill.  O passeio mostra coisas bonitas da cidade.

Pertinho do cais entrei num restaurante.  Não podia ser diferente: vinho Gewurztraminer e Tarte Gratinée.  Não precisava de mais nada.  O dia estava completo.

Voltei de bonde, que virou meu modelo de transporte público frances.  Plataforma alta, acessibilidade perfeita, mostrador de tempo de espera, um sonho.

Manhã para voltar à Catedral.  Parecia mais clara com a luz da manhã, menos avermelhada.  Continuava maravilhosa e foi para a minha lista de igrejas preferidas.

Fui até Petite France.  O nome vem do tempo em que a Alsácia pertencia à Alemanha.  As pessoas com doenças venéreas vinham se tratar ali.  Os alemães diziam que tais doenças eram culpa dos franceses e debochavam dizendo que ali era a Petite France.

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Petite France, junto do Rio Ill.

Nesta tarde tinha a visita a Riquewihr e a um castelo que nunca ouvira falar: Haut-Königsbourg.  Que boas surpresas.

Passamos primeiro pela vila de vinicultores onde nasceu a Miss France 2004, orgulho local e grandes cartazes com suas fotos.

Começa a subida até o castelo-fortaleza nas montanhas Vosges, cruzando o vale do rio Reno, fazendo a fronteira com a Alemanha das montanhas da Floresta Negra. Na chegada, fomos recebidos por um artista local, um passarinho alaranjado e castanho fazendo sua festa com um canto muito maior que seu tamanho.  Paramos para escutar, ele merecia.

Haut Königsbourg provavelmente surgiu como uma das fortificações criadas do Frederico de Hohenstaufen, Duque da Suábia em torno de 1105.  No início do século XIII passou para os Duques da Alsácia e foi danificado durante guerras locais.  Mais tarde passou à propriedade da família real dos Habsburgos e foi doado aos Thierstein em 1479.  Eles iniciaram sua adaptação para a artilharia mas perderam a posse por causa de dívidas.   Sucederam-se vários ocupantes e funções militares.  A Guerra dos Trinta Anos, envolvendo a Áustria dos Habsburgos, chegou até a Alsácia e o castelo foi atacado, pilhado e incendiado pelos suecos em 1633.  Seguiram-se quase trezentos anos de abandono.

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Conjunto de Haut Königsbourg.

Em 1865, as terras da fortaleza passaram ao patrimônio da cidade de Sélestat e em 1871 toda a região da Alsácia passa ao domínio alemão. A comunidade de Selestat, preocupada em recuperar seu velho castelo, decidiu doar as ruínas ao Kaiser Guilherme II em 1899, que encarrega o arqueólogo Bodo Ebhardt da restauração e modernização.  O bom estado das ruínas permitiu que o estudioso da Idade Média pudesse recuperar sua grandeza, mesclando novos recursos, como pode ser visto na sala de armas medievais onde existe uma lareira de cerâmica.  Com o Tratado de Versalhes em 1919, a propriedade volta à França.  Foi ocupado novamente pelos alemães durante a Segunda Guerra Mundial e mais uma vez retornou ao patrimônio francês.

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Acesso ao castelo.  À direita, reprodução da foto em preto e branco de como foi encontrado esse pórtico.

Logo na entrada dá para perceber o cuidado que o arqueólogo teve.  Há reproduções de fotos da época de como o local estava.  O mesmo se repete pelo interior.  Foi uma visita fascinante.

Dali passamos por Bergheim e suas casinhas coloridas, algumas em cor de lavanda.

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Centro de Bergheim.

Riquewihr é outra das vilas vinícolas ao longo do Reno, quase todos brancos, como o característico Gewurtztraminer (tem gosto de flor, sem ser adocicado).  A primeira e tradicional parada em Riquewihr é no alto dos vinhedos.

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Os vinhedos descem a encosta e lá em baixo está Riquewihr.

Depois é descer e caminhar pelas ruas de muitas casas de vinho, além das gostosuras doces.

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Parecem casinhas de fantasia no centro de Riquewihr.

As lojas mantêm o tipo de propaganda que se usava há alguns séculos, com bonecos ou peças indicando o tipo de atividade exercida. Cada pedaço de Riquewihr parece casa de bonecas.

Tenho que confessar que, apesar do vinho delicioso que provamos na visita a um produtor, eu estava era ansiosa para me envolver naquelas ladeiras suaves com piso de pedra, com sua torre do relógio e casinhas de brinquedo.

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O antigo estilo de propaganda.

Tinha a manhã livre em Estrasburgo.  Fui mais uma vez à Catedral que me encantava.  Caminhei sem destino e fui seguindo o rio.

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Um pouco da silhueta da catedral e o entorno da praça.

Na volta ao hotel tinha um recado da agência de turismo que a referência do meu cartão de credito não autorizava o pagamento do passeio.  Dei o número de outro cartão e na mesma hora tudo foi resolvido.  Antecipando encrencas, o mesmo banco emissor deste cartão de crédito me bloqueou numa viagem seguinte, impedindo saque no exterior.  O final conto depois.

Peguei a maleta, mais uma vez usei o bonde pelo qual me apaixonara e embarquei de volta a Paris.  E foi neste trem que descobri a besteira que tinha acontecido com meu passe ferroviário e que podia ter me causado uma baita encrenca, além de pagar multa.  O primeiro fiscal do trem que embarquei, entre Paris e Nancy, não validou meu passe.  Depois fiz mais dois trechos e continuaram não validando.  Por sorte eu tinha anotado no passe os horários e números dos trens que usei.  Por sorte o fiscal deste trecho percebeu que houvera um engano, não era coisa de má fé, e não me multou.  Acertou tudo, validou o bilhete e tentou me dar uma bronca.

Na chegada, passei numa Paul, comprei um combo completo para jantar, metrô até o hotel.  Aí era só comer e descansar porque ainda tinha mais.

Um sábado livre em Paris.  Destino certo era o Museu D’Orsay.  Cheguei pouquinho antes da abertura, o suficiente para entrar no primeiro grupo, já que é controlado o número de visitantes que está lá dentro.

O local é sensacional.  Adorei o relógio grandão, talvez por causa da antiga função do local, de estação ferroviária.  Não sei se permanente ou temporária, a exposição de mobiliário e decoração interna de peças em Art Nouveau me deixou deliciada.

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Um charme esse museu na antiga estação.

Dali fui para o Centre Georges Pompidou e não tive a mesma sensação.  Caminhei por Les Halles e arredores.  Já sentia algum cansaço de fim de viagem chegando.

Saí para jantar em algum lugar perto do Arco do Triunfo, para as despedidas daquele recanto luminoso entre avenidas.  Errei, e quando as luzes acenderam não iluminaram nem ele nem seu entorno.  Acontece.

Domingos de manhã cedo podem ser complicados de conseguir um taxi, então tinha contratado um transporte para me levar até o aeroporto de Orly, de onde saía meu voo para Toulouse.

A minha opção de hospedagem em Toulouse tinha dois motivos: tinha aeroporto podendo voltar a Paris para fazer conexão na volta e ficava perto de Carcassone.  Depois de mais de vinte anos esperando eu ia conhecer de perto aquela que eu só vi a silhueta de longe.  Tudo certo e lá cheguei eu para hospedagem num hotel bem central.

Fui caminhar pela área próxima, queria ver logo a Basílica de Saint Sernin, consagrada em 1096 e sempre modificada até sua atual forma românica com a torre de várias faces.  É considerada a maior igreja da Europa em seu estilo.

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Um patrimônio românico protegido – Basílica de Saint Sernin.

Em algum lugar tinha lido que a cidade era famosa pelo produtos feitos à base de violetas.  Nas lojas perto da igreja achei tudo caríssimo.  Dali fui jantar numa praça sobre a qual tinha a informação de ser bem animada e era um tédio só.

Dormi um pouco a mais do que devia e cheguei na estação de trens era quase dez horas.  Com meu passe na mão, e já escaldada pelo susto no início da viagem, fui até a bilheteria.  Meu passe não dava direito a qualquer trem.  Teria que esperar um regional por mais de uma hora.  Se não há opção, o jeito é esperar e depois apreciar a viagem parando nas cidadezinhas.

Cheguei a Carcassone depois de meio dia.  Tempo ruim mas não chovia.  Fui informada que o caminho a pé era fácil e bonito.  Só esqueceram de dizer que andaria mais de uma hora.  Perdi tempo e estava ficando entre frustrada e chateada com as coisas acontecendo de forma complicada.  No meio do caminho até tentei um taxi porém não consegui.

Por fim cheguei lá e estava de frente para as muralhas.  Entrei pelo portão junto da figura de Madame Carcas.  Conta a lenda que Carlos Magno cercava a cidade e pretendia uma rendição pela fome.  A senhora determinou que engordassem um porco e um dia mandou que o animal fosse atirado para fora.  Carlos Magno entendeu que se havia um porco tão gordo é porque a comida era bastante.  Quando se retirava, Carcas manda soar o sino (Carcas sonne, a origem do nome) e pede o retorno do conquistador.  E com o estratagema do porco, pode negociar com ele uma saída honrosa para a cidade e seu povo.

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Porte Narbonaise, onde fica a figura lendária de Madame Carcas esculpida em pedra.

Ali eu tive a sensação de estória de princesa, mesmo sabendo que a Idade Média não tinha nada de romantismo e leveza.  E ali onde eu estava havia um drama a mais.  Era País Cátaro, um grupo de cristãos rebeldes aos olhos dos governantes.

A origem da ocupação daquele morro vem desde antes de Cristo, da colônia romana de “Julia Carcaso”, que se beneficiou da “pax Romana” durante séculos. Com a queda do Império Romano do Ocidente, foi invadida por visigodos e depois por sarracenos, que não deixaram marcas ou obras.

Foi conquistada por Carlos Magno no século IX e passou ao império carolíngio dos francos, que logo se fragmentou, dando início à época feudal.  O domínio dos Condes de Carcassonne durou três séculos, terminando com a família dos Trencavel, construtores do castelo e da igreja de São Nazário e São Celso, um judeu cristianizado e o menino que o acompanhou até a morte.

Eles adotaram a doutrina cristã dos cátaros, uma designação que vem do grego significando puros.  A crença era severa e rígida, admitindo apenas o Bem – criador do mundo espiritual – e o Mal – criador do mundo material e visível, incluindo as pessoas.

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Interior da Igreja de São Nazario e São Celso.

A religião cristã na forma que os cátaros a professavam não era aceita pelos poderosos da época.  Contra eles foram lançadas as chamadas “Cruzadas Albigenses”.

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Dentro das muralhas, em frente ao Castelo de Carcassone.

Todos os senhores feudais da região chamada “País Cátaro”, no atual Languedoc frances, foram considerados hereges e exterminados por Simon de Montfort em 1209.  Anos mais tarde, Carcassonne passa ao poder do Rei Luis IX (o rei São Luis), que determinou a abertura da entrada principal, a Porte Narbonnaise.  Seu filho Felipe III ordenou a construção da muralha externa, criando então o aspecto de fortaleza real, e mandou ampliar a Igreja.  É considerada modelo de integração entre a construção românica dos Trencavel e os acréscimos góticos no século XIII.  Foi sitiada e resistiu aos soldados ingleses durante a Guerra dos Cem Anos (séc. XIV e XV).

Seu declínio começa no século XVII com o Tratado dos Pirineus que altera as fronteiras com a Espanha.  O espaço meio abandonado acabou sendo ocupado por casebres e pedras foram removidas.  Nascido em Carcassonne, o intelectual Jean-Pierre Cros Mayrvieille, ajudado pelo escritor Prosper Merimée (o autor de “Carmen”, que deu origem à ópera), consegue iniciar sua recuperação em 1836.  Anos mais tarde o controvertido arquiteto Eugène Viollet-le Duc (1814–1879) foi o responsável por remover os casebres, mas desprezou antigas estruturas e criou novos edifícios.

Na restauração foi enfatizado o período da fortaleza real e o que se vê hoje é o resultado das sucessivas alterações de ocupação, importância e finalidade em diferentes épocas, usando materiais e técnicas construtivas distintas, passando por estilos diversos.  Ainda há restos da construção primitiva, identificados pelos tijolos e pela marcação de uma faixa vermelha típica das edificações galo-romanas.

Carcassonne só foi incluída como Patrimônio da Humanidade em 1997 e dispõe de hotéis, comércio e restaurantes nos velhos prédios do interior da cidadela.

Visitei tudo o que pude, incluindo o interior do castelo onde havia um excelente audiovisual sobre os cátaros.  Olhei cada cantinho.  Matei minha ansiedade de tantos anos.

Desci todo o caminho, apreciando a cidade, agora já sem a pressa dos ansiosos.

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Carcassone visto da Ponte Velha.

E descobri que estava com fome.  Com tanta coisa acontecendo, esqueci de comer.  Quase chegando à estação encontrei um fast food salvador para aquela hora.

Tinha comprado um livro sobre os cátaros, que li quase todo no trem de volta a Toulouse.  Jantei um cassoulet quando chegava ao hotel.

Mais um dia para passear em Toulouse e tentei fazer o passeio de barco pelo Canal du Midi.  E me aconteceu uma das situações mais engraçadas em viagem.  Tinha um passe de ônibus e embarquei num que ia para o embarcadouro do passeio pelo canal.  Para confirmar, perguntei ao motorista se era aquele mesmo que eu queria.  Usei um idioma meio frances, meio turismes; ele entendeu porém perguntou de onde eu era.  Quando respondi Brasil, ele se ergueu e começou a cantarolar para os usuários a “Aquarela do Brasil” dirigida para mim.  Puro constrangimento na hora, só ficou divertido depois.

Só que esse passeio, que eu já tinha tentado com outra empresa pela manhã, estava fadado a não ser feito.  O barco estava parado em reparos.

Não consegui navegar por ele, mas como ele cruza uma parte da cidade, queria pelo menos vê-lo.  Consegui achar o Canal du Midi, antes chamado Canal Real do Languedoc, a grande obra inaugurada em 1681.  Ligava o Mediterrâneo ao rio Garonne e daí chegava ao Atlântico.  E foi ali que encontrei uma “peniche” charmosa que vendia produtos de violetas, de sabonetes a chocolates, lindinhos e por ótimos preços.

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Canal du Midi e a peniche das violetas.

Meu jantar de despedida foi na Place du Capitole, vendo as luzes se acenderem.

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O Capitólio e ao fundo o Teatro da Ópera.

Uma rápida voltinha de manhã cedo e quando olhei para o céu estava voando um avião Beluga, o cargueiro da Airbus que parece mesmo uma baleia desta espécie.  Toulouse é a terra da empresa.

Almoço cedinho e rumo ao aeroporto.  Na confusão do embarque, fiquei presa entre um grupo de pilotos brasileiros que falavam muita bobagem.  Eu comecei a rir e avisei que tinha alguém baixinho ali no meio que estava entendendo tudo.  Foi um grande gargalhada. Eles estavam de volta ao Brasil depois de um período de treinamento na Airbus.  Um deles por acaso era meu vizinho de poltrona e foi explicando tudo o que se via das instalações da fábrica durante a decolagem.

Em Paris, estávamos todos perdidos no desembarque.  Pedir informações era ter uma cara feia olhando como se fôssemos uns alienígenas.  Nossa sorte é que tínhamos muito tempo até a hora dos respectivos voos.  E conseguimos achar as direções certas.

Foi uma viagem bem diversificada.  Conheci muito do que queria, como o Vale do Rio Loire com seus castelos e Carcassone.  Virei criança no Parc Astérix e conheci cenários de pinturas e filmes.  Caminhei por praças luminosas e conheci igrejas preciosas.  Teve até um pouquinho de festa no cemitério.  Gostaria de ter conhecido a costa da Normandia, mas não foi desta vez.  Fica um motivo para um dia talvez voltar à França.

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O pequeno cantor de Haut Königsburg.

2007 (agosto) – O longo cruzeiro ferroviário – Parte II

Ainda faltava um bom trecho da viagem de trem, agora finalmente entrando na região que dá nome à ferrovia.  Sibéria, cheia de histórias soturnas.

Noite com o trem em deslocamento, ainda acordamos cruzando a Mongólia por Suche Baatar e enfim chegamos à Rússia.  Estávamos na Sibéria, acompanhando o vale do grande rio Selenga.  A partir dali estaríamos no ramo principal da ferrovia transiberiana.  E teríamos uma aula sobre ela no dia de trânsito sem visitas.

Depois do almoço, descemos em Ulaan Ude.  Fazia um calor quase carioca.  As roupas que todos tinham levado eram muito mais para frio do que os trinta e muitos graus que encontramos na chegada a uma terra famosa por seu frio mortal.

As casas de madeira na cidade são lindas, mas são quase inexistentes nos dias atuais.  Como a calefação é essencial no inverno, muitas se incendeiam de forma irrecuperável.  E quase fiquei sem nenhuma foto delas.  Inexperiente em equipamentos digitais, comprei um cartão de memória que era compatível com minha câmera; e essa compatibilidade me fez perder muitas fotos numa viagem que não se repete.  Fotografava, mostrava a foto no visor e depois não gravava.  Por sorte descobri ainda durante a viagem, diminui a resolução das fotos e só usei o cartão original.

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A única foto que não perdi das lindas casas de madeira trabalhada, com suas chaminés.

Ulan Ude não tem muito o que mostrar.  Lá ainda existe uma enorme cabeça de Lenin esculpida em pedra, rodeada por prédios do governo.Voltando à cidade, muitos reclamavam do calor.  A guia explicou que, ao contrário da fama gelada, a questão do clima da Sibéria são os extremos de temperatura.  Estão no meio do continente, sem nenhum mar perto que amenize temperaturas e umidade.  Tudo depende da massa de ar que vem do norte.  Um forno no verão, um congelador no inverno.

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Praça Sovetov.

Numa tarde de domingo, que eles sabiam ser final de verão, era hora de aproveitar o calçadão no centro da cidade.  Neste início de setembro estavam nos últimos dias de calor, logo chegaria a primeira massa polar.

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No calçadão de Ulan Ude.

Foi interessante notar que a grande maioria das pessoas que circulavam por ali tinham traços orientais, em nada similares ao padrão russo.

Mais uma noite a bordo e enquanto dormíamos o trem trocou a locomotiva elétrica por uma a diesel.  Estávamos entrando nos trilhos quase abandonados em torno do lago Baikal.  E ali começava uma temporada de uaus!

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Começando o dia no trecho da ferrovia ao redor do lago Baikal.

Os “uaus” eram para as paisagens deslumbrantes, túneis de pedra, trilhos quase dentro d’água, vegetação exuberante, curvas inesperadas para mais paisagens delirantes.

Há números expressivos sobre esse trecho, que é chamado de “Linha Circumbaikal”.  Foi construído entre 1902 e 1905.  Todos os 39 túneis foram construídos à mão, com uso de explosivos.  Trabalharam presos, assalariados e engenheiros, inclusive estrangeiros.  Há também 29 pontes metálicas, 15 galerias e 400 pequenas pontes.

O lago Baikal, cujo nome pode ter origem turca – Bai Kul, significando lago rico ou pode ser do idioma mongol Baigal – labareda rica, é outra enormidade.  É o maior lago do mundo, com 31.500 quilômetros quadrados de superfície, o que lhe dá uma área maior que a Bélgica.  Sua largura chega a 80 quilômetros e comprimento de 636 quilômetros é a mesma distância entre Moscou e São Petersburgo.  A profundidade média é de 730 metros.  O volume de água é de 23.000 quilômetros cúbicos e está sujeito a variações de maré.

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Muitos túneis em curvas.

Corresponde a quatro quintos da água doce disponível na Rússia.  São mapeados 336 rios desaguando no lago, sendo o maior deles o rio Selenga que vem da Mongólia bastante poluído.  Há pouco tempo começaram negociações entre os dois países sobre qualidade da água do lago.  A única saída de água é pelo rio Angará, que chega ao rio Ienesei e segue pela Rússia em direção ao oceano Ártico.  A biota do lago é descrita como tendo 1085 espécies vegetais e 1500 espécies animais – com 52 espécies de peixes (o mais conhecido é o omul, que é comestível e tem carne muito gordurosa por causa do frio, e que foi experimentado e eu não gostei).

Logo começou o revezamento de passageiros para fazer uma parte do trajeto no gradil da locomotiva, que segue numa velocidade de 20 quilômetros por hora.

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No passeio da locomotiva.

Um passeio para grandes fotos.

Naquele lago enorme vive apenas uma espécie de mamífero, a quase extinta foca de Baikal.

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Não dava tempo para piscar os olhos ou perdia um ângulo sempre especial da paisagem.

Este trecho da ferrovia foi desativado em 1956, com a construção da hidrelétrica no rio Angará.  Parte dos trilhos ficou submersa, provocando a decadência das vilas.

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Fazendo pose na locomotiva a diesel.

Fizemos um passeio de barco pelo lago, onde ainda restam velhas estruturas da indústria pesqueira, que mantem vivas, apesar de reduzidas, algumas pequenas cidades.  Tínhamos um dia de céu limpíssimo.

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Passeio de barco passando por Fort Baikal, no quilômetro 72 da ferrovia desativada comercialmente.

Na altura do quilômetro 110 fica o vilarejo de Polovinnyj com suas casinhas coloridas de madeira onde restam poucos moradores.  Ali existe uma prainha, e vários europeus mergulharam.

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Na praia em Polovinnyj.

O pessoal do clima quente se contentou em molhar as canelas, apenas para ter certeza que a água estava bem fria.

Nesses vilarejos, vários dos moradores trabalham na manutenção da linha férrea.  Duas vezes por semana há trens que atendem a estas populações.  Não foi comentado nenhum projeto de ocupação da região, nem mesmo para turismo sustentável.

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Por precaução, só molhar os pés.

Pouco mais adiante, já no final da tarde no quilômetro 120 em Marituj, fizemos uma caminhada pelo bosque enquanto preparavam o piquenique.  Dizem que de vez em quando aparecem ursos.

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A vidinha sonolenta das vilas que foram ficando desabitadas.

E foi só durante esse jantar que percebemos a presença dos militares russos bem armados que acompanham o trem nesta visita ao Baikal.

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Com a guia Ekaterina no piquenique de Baikal.

Depois de comer e beber, fui andar por ali e conheci meus amiguinhos russos e seu gatinho.  Conversamos bastante, tendo o gato como intérprete.  O que eles gostaram mesmo foi das muitas fotos que tirei deles e lhes mostrava.  Muitos risos.

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Meus amiguinhos e seu gato.

O anoitecer nesta época do ano começa cerca das 21 horas, o que oferece belas cores e mais fotos.  Tempo de ver um pouco mais das paisagens incríveis, das luzes de uma cidade lá na outra margem, retomar nossa locomotiva.  Foi um dia de delícias visuais.

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Fim do dia mais rico de paisagens.

Seguimos até Irkutsk, onde chegamos de manhã bem cedo e logo fomos fazer o check in no hotel Intourist.  Com o calor que fazia, o hotel foi apelidado de Lavanderia Irkutsk.  Todos esperavam o frio da viagem, e as poucas roupas frescas que tínhamos já estavam inviáveis.  O tempinho antes da saída para os passeios foi dedicado à lavagem de roupas.

Irkutsk tem origem com os cossacos do século XVII, fica situada às margens do rio Angara que segue para o norte levando as águas do lago Baikal.  Foi importante centro comercial na parte oriental da Sibéria e por ali passavam as rotas de presos políticos

A cidade tem igrejas como as Catedrais da Epifânia e de Omen, onde fica o túmulo do dinamarquês declarado herói russo Vitus Bering, o navegador que conquistou o Alasca para a Rússia.  Por serem consideradas obras de arte não foram destruídas durante o regime soviético.

A Catedral do Salvador também escapou por causa de seus afrescos externos, mas a mais bonita de todas, que vimos apenas de desenhos e pinturas, era Nossa Senhora de Kazan, demolida para dar lugar à Prefeitura, um monstrengo sem estilo.

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Os afresco salvadores da Catedral do Salvador.

O melhor foi a vista da tarde ao Museu Etnográfico Talcy, um museu aberto para onde foram levadas antigas casas, escolas, fortalezas e outras estruturas de diversas partes da Sibéria e que contam agora como era a vida naquele clima duro.  Em geral, animais no térreo e pessoas no piso superior, aproveitando o calor do corpo do animais.

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Museu Talcy.  A edificação à direita é um forte militar.

Um lugar emblemático é o Monumento ao Imperador Alexandre III (1881 a 1894) idealizador da ferrovia transiberiana.  É uma cópia do monumento original, que foi destruído.  Ele não chegou a conhecer a obra pronta.

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Monumento reconstruído ao Czar Alexandre III.

Como o jantar seria no hotel e era em frente ao Boulevard Gagarin (homenagem ao primeiro cosmonauta soviético), foi para lá que muitos de nós fomos para caminhar e aproveitar o calor e o sol de um belo fim de tarde junto do rio.

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O bonito e aprazível Boulevard Gagarin.

Dormimos no hotel, de onde saímos ainda escuro para tomar café da manhã com o trem já em movimento.  Dia longo, todo de viagem cruzando a Sibéria Oriental.  E eles aproveitam para diversas reuniões dos grupos.  Teve aula de russo básico seguida de degustação de vodcas.  Também teve leitura sobre o que é a ferrovia transiberiana.

E então é hora de explicar um pouco mais sobre essa ferrovia cercada de mistério, muito trabalho, esforço sobre-humano e muitas vidas.

Foi o Czar Alexandre III que idealizou a ferrovia cortando todo o imenso território do Império Russo, passando por diversos povos conquistados ou agregados.  A obra foi executada a partir de 1891 e o ramo principal ia de Vladivostok no extremo oriental do Pacífico até a capital Moscou.  Cerca de 9200 quilômetros que podiam ser percorridos em oito dias, passando por sete fusos horários.  Foi construída numa média de 1000 quilômetros por ano, imaginando-se aí a quantidade de gente remunerada ou em trabalhos forçados, debaixo de muita neve e pouca comida.  Sua construção e dos seus ramos complementares foi até 1916, quando governava Nicolau II.  Sua eletrificação só foi concluída em 2002.

Seu eixo principal é como uma coluna vertebral; dali vão sair ramificações como se fossem costelas.  Com tantos quilômetros, é a maior ferrovia do mundo e chega hoje a outros países, especialmente aos da antiga União Soviética.  E assim se foram as horas só ouvindo o som de tleco-tleco-tleco das rodas nos trilhos.

Foi um dia para curtir a vida no trem.  O Grupo Azul ocupava um vagão com oito cabines, sendo que duas estavam com ocupação de uma só pessoa.  A reunião para bater papo era na minha cabine, pois a cama desocupada virava sofá.  Era só botar as malas para baixo.

Para passar o tempo, havia reunião dos grupos no salão restaurante.  Ali os guias tentavam nos fazer cantar canções russas e davam explicações sobre a administração do país, dividido em repúblicas e “oblast”, que para nós eram a mesma coisa.

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A bagunça da cabine 7 do vagão 6, que virava sala de visitas.

A comida era boa e farta.  Misturava pratos russos com alguma coisa mais neutra.  Só não dava para comer um tipo de mingau – odeio mingaus – russo, que vinha num pote e era servido de concha.  No fim das refeições era servido chá, em fartas canecas de vidro e prata.

Havia dois banheiros para todo o vagão e não havia problemas.  Só eram mais disputados na madrugada, todos circulando de pijama para eliminar o chá do jantar.  Ríamos muito.  O único chuveiro era compartilhado conforme uma escala onde cada um escrevia seu nome num dos horários disponíveis.  Quinze minutos para cada um, o que era tempo suficiente.  No corredor, tomadas para carregar baterias.

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No fim do corredor um dos banheiros e a sala de banho.  Na ponta oposta estava o outro banheiro.

Só uma noite houve barulheira.  Dois casais tinham bebido muito e as conversas e cantorias extrapolaram.  Logo foram sossegados pelas duas cuidadoras do vagão, com jeito de inspetoras de colégio antigo quando precisavam ser duras.  De resto eram atenciosas e gentis, guardavam nossas compras de caviar na geladeira e cuidaram da água quente no dia que pedimos para antecipar o horário da escala de banhos.

Passado esse dia, chegamos na maior cidade da Sibéria e terceira maior cidade russa, famosa pelas mulheres bonitas e de porte nobre, Novosibirsk.  No desembarque houve música e dança, além de oferecer pão e sal, símbolos da hospitalidade.

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Recepção na estação de Novosibirsk com música e pão.

Na visita ao mercado, um lugar que russos gostam bastante, muita gente aproveitou para comprar caviar.  Não que eu goste, mas também comprei.

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Vários balcões do mercado com diversos tipos de caviar.

O passeio de barco pelo rio Ob foi meio sem graça.

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Rio Ob, o quarto mais longo do país.  Ao fundo a silhueta de Novosibirsk.

A cidade não tem nenhum encanto especial.  Circulamos pelo centro e terminamos no principal monumento.  Nossa guia local, muito bonita como recomenda a fama da cidade, brigou com um sapato de salto bem alto de uns dois números maior que o seu pé, para ansiedade geral a cada deslize.  Acabou aplaudida.

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Monumento aos soldados russos e o Teatro Dramático.

A cidade tinha enriquecido fazia pouco tempo.  O reflexo estava no movimento de carros particulares, apesar de muito transporte público.

Sobrou tempo e com ajuda de nossa já muito querida Ekaterina consegui ir até a central telefônica e falar com minha mãe.  Telefones celulares ainda não eram eficientes para chamadas internacionais em 2007.  Cada grupo foi a um restaurante diferente para conhecer a culinária local.  A comida lembro que foi gostosa mas não dava muito para saber o que era.

Noite e manhã viajando até Yekaterinburg, chamada capital das Montanhas Urais, fronteira entre Ásia e Europa.  A cidade foi criada em 1723 pelo Czar Pedro, o Grande.  Não tem a magnificência de São Petersburgo mas é bonita, ampla.

A caminho do centro antigo, era fácil notar a mistura de velhos bondes e carros.  E muita propaganda.

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Ainda circulavam os velhos bondes.

Começamos por um mercado de artesanato ao ar livre permanente.  Lembro que comprei uma escova de cabelos toda em madeira trabalhada, com relevo de uma paisagem nevada.  São passados mais de dez anos e ela está na minha bolsa.

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No mercado de artesanato.

No centro vimos a praça Truda e a igreja da Santa Catarina, padroeira da cidade.

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Praça Truda.

O ponto principal da visita é a Catedral do Sangue, na realidade uma igreja de dois andares com o piso em granito vermelho lembrando a cor do sangue.  Foi erguida no local da casa onde a família imperial foi executada em 1918 pelos bolcheviques.  À volta da igreja, fotos da família.  Uma visita bem emocional.  Fotos eram totalmente proibidas no seu interior.

A história tem casos estranhos.  Durante o regime soviético, que já dava sinais de que as coisas não iam bem, foi decidido pelo governador local Boris Yeltsin que a velha casa seria destruída a fim de não virar local de peregrinação ou devoção.  Passaram-se os anos, o regime comunista foi extinto, a União Soviética se desfez e Boris Yeltsin se tornou governante da Rússia.  Coube a ele inaugurar a Catedral do Sangue em 2005.

Ekat 4 Catedral do Sangue

Catedral do Sangue cercada de fotos dos últimos Romanov.

A morte e ocultação da família foi cercada de mistério durante décadas, havendo até a lenda de que uma das princesas teria sobrevivido.  Em 1998 já haviam descoberto e identificado os restos mortais de quase todos, faltando apenas o único menino e uma das irmãs.  Isso aconteceu pouco depois dessa viagem.

Pouca coisa pode ser vista dos Montes Urais porque começamos a passar por eles já anoitecendo.  Estávamos saindo da Ásia e entrando na Europa.  Também não vimos Krasnoyarsk, que a nossa Ekaterina dizia ser uma das mais belas vistas.  Para nos compensar, cada um de nós recebeu uma nota de rublo com a imagem da ponte sobre o rio Yenisey, considerada entre as mais bonitas da Rússia.

Início Urais

Começando a noite e começando a cruzar os Montes Urais, que afinal não vimos.

Enfim chegamos a Kazan, terra de nossa guia.  Festa brasileira, seus pais a esperavam na estação e levavam docinhos típicos para seus passageiros.  Como se fôssemos velhos conhecidos, foram beijos e abraços no casal.

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A estação ferroviária de Kazan, a mais bonita do roteiro.

Ali lembramos muito da guia local de Ulaan Ude quando falou que estavam esperando para breve a primeira massa polar.  Ela chegou.  Frio e chuva.  Mas nem isso tira o charme de Kazan.

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Jardins do Kremlin de Kazan.

A cidade desde sempre abrigou judeus e muçulmanos, numa zona onde tártaros, cossacos e russos travaram grandes disputas.

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No interior do Kremlin, a Mesquita de Qolsharif.

E a visita começa pela Mesquita Tártara, localizada num kremlin pintado em cores claras.  A modernidade do interior surpreende.

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Dentro da Mesquita de Qolsharif.

E logo se descobre que kremlins existem vários.  O nome significa o tipo de local, e não apenas o mais famoso em Moscou.

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Outro mirante do Kremlin, de onde se vê o rio Kazanka.

Saímos do Kremlin com sua mesquita e fomos para a Catedral Ortodoxa Russa de São Pedro e São Paulo, que parece um bolo festivo.  Apesar das cores fortes e decoração externa florida, ela é agradável de ser vista, não fica esquisita.

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Uma das torres em estilo próprio na Catedral Ortodoxa Russa de São Pedro e São Paulo.

Foi construída no século XVIII custeada por um comerciante local.  Seu estilo florido em nada lembra as tradicionais igrejas ortodoxas russas e suas torres com as chamadas cebolas.  É bem diferente e muito acolhedora.

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A Catedral e sua decoração colorida desde a base.

Houve um passeio de barco pelo grande rio Volga, mas ventava e chuviscava, tirando um pouco a visibilidade.  Depois do almoço tivemos uma apresentação de música no Conservatório, bem estilo de passeio russo.

Terminamos a tarde de sábado no calçadão do centro da cidade.  Tinha ali uma loja de rede fast food; quando foi aberta a primeira loja em Moscou, o fato virou notícia nos jornais do mundo todo.  Agora já eram várias e fui comer o mais básico dos sanduíches, só para ter o prazer de dizer que tinha comido.  É sempre o mesmo gosto.

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Fast food na rua Baumana.

De gostosura local, comprei uma lata de “tchac tchac”, os docinhos que a mãe de Ekaterina nos ofereceu.  Depois eu iria me preocupar em como arranjar lugar para aquele pacotão na mala.  Valeu a pena, fez sucesso em casa e com amigos.  A lata virou biscoiteira e sempre que está em uso vejo a foto do kremlin de Kazan.

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Da Igreja da Epifania resta somente a torre no centro de Kazan.

Na despedida, mais abraços na família de nossa guia, que tinha se tornado uma pessoa muito querida do grupo.  E embarcamos para nossa última noite no trem “Ouro dos Czares”.  E um rápido comentário, czar era o título do imperador russo, que significa césar, inspirado no império romano.

A manhã nublada deixava prever que estaria frio.  Pelo caminho, muitas bétulas e seus troncos claros, a madeira das antigas matrioscas.

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Bétulas chegando a Moscou.

E assim chegamos com chuva, frio e bastante vento em Moscou.  Erraram o lugar da nossa Sibéria.

A cidade estava com muitas avenidas fechadas por causa de uma maratona ou algo assim, e com chuva o trânsito fica ainda pior mesmo num domingo.

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Nossa Sibéria em Moscou.  E com engarrafamento.

Começamos logo as visitas pelo Kremlin, e foi bem ruinzinha.  Nenhum daqueles prédio magníficos de salões estonteantes que às vezes recebemos em fotos ou vemos na televisão.  O almoço foi num restaurante na margem do rio Moscou, de onde fugi para tirar fotos do Kremlin de um ótimo ângulo.

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Kremlin de Moscou.

Continuamos as visitas e minhas bochechas ardiam, o rosto me incomodava de tanto frio.  Parecia que se formava uma película de gelo sobre a pele.  Ao fim nos levaram ao hotel, longe do centro, longe de estação de metrô e ao lado de um estádio esportivo.  Quando olhei meu rosto no espelho, vi duas bolotas rosadas nas bochechas.  O frio já tinha me queimado.

Não lembro onde foi o jantar, deve ter sido no hotel.  Em seguida saímos para passear de metrô e ver algumas de suas famosas estações e depois uma visita noturna à Praça Vermelha.

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Estação de metrô de Komsomolskaya.

Minha memória deu um pulo no tempo e de repente estava dentro de um GUM reformado, lindo, perfumado.  Em nada lembrava aquele mercado popular que conheci em 1985, mal cuidado e fedorento.  Agora era um templo de lojas de grife e marcas russas especiais.

Quando saímos, nevava.  Foi pouco e rápido, mas o suficiente para aparecer nas fotos.

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Na Praça Vermelha, o GUM iluminado e os floquinhos de neve.

Amanheceu sem chuva e não fazia tanto frio.  A visita da cidade no dia seguinte só teve um lugar que já conhecia – olhar por fora a Universidade Lomonasov.  De resto, mostraram lugares que eram proibidos ou ficavam escondidos durante o regime soviético.  Assim fomos até o Parque Novodevich, com o Monastério da Nova Virgem (Novodevich) e o cemitério.  O lugar esteve fechado por muitos anos, por ordem de Leonid Brejnev pois ali está também seu antecessor Nikita Kruchev, mais popular e mais estimado.  Depois de reaberto, várias figuras de prestígio foram enterrados ali, como Raisa Gorbatchev e Boris Yeltsin.

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Novodevich, o parque e o Monastério em restauração.

Depois foi a vez da reconstruída Catedral do Salvador.  Desta igreja eu me lembro, não como igreja, mas da visita ao centro desportivo coletivo que foi construído no terreno onde ela tinha sido demolida.  O regime caiu, acabou o centro comunitário e refizeram a igreja com seus detalhes originais.  Coisas estranhas acontecem.

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Jardins ao lado da Igreja do Cristo Salvador, com o monumento ao Czar Alexandre I.  A praça e o espaço da igreja existiam, foram extintos e substituídos por centro esportivo e enfim reconstruídos após a queda da União Soviética.

Na tarde livre fui caminhar com a brasileira minha vizinha de cabine pela rua Arbat, que ficou famosa por receber gente participando de manifestações quando a União Soviética se desmanchava.  Muitas barraquinhas, gente vendendo broches e quepes do antigo exército, dizendo em qualquer idioma que aquilo era original.  Nem pensar.  As matrioscas também existiam aos montes, mas não com as carinhas das avós russas.  Eles tinham cara de políticos, artistas e até do Ronaldinho Gaúcho.  Preferi ficar somente com as antigas que eu já tinha.

Almoçamos no GUM.  E na hora de escrever aqui, não resisti a fazer um túnel do tempo.

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Interior do GUM em 2007.

A passarela e a claraboia podem não ser exatamente as mesmas, mas dá para reconhecer apesar das cores perdidas.

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Interior do GUM em 1985.

O túmulo de Lenin continua lá e desconfio que mais ninguém visita.  Faltava realizar um desejo de muitos anos e ir ao interior da Catedral de São Basílio, que por sinal não tem este nome.  Ela é a Catedral da Intercessão da Virgem ou Catedral Pokrovskiy, construída entre 1555 e 1561 por ordem do Czar Ivan IV, o Terrível.   A catedral originalmente constava de uma torre central que une oito capelas em honra de cada um dos santos correspondentes aos oito dias de cerco que Ivan IV, o Terrível impôs à cidade de Kazan.  No interior da catedral todas as paredes são decoradas, além dos muitos iconostásios, pinturas de santos tipicamente das igrejas cristãs ortodoxas (onde não há esculturas de santos) e que são um protegidíssimo patrimônio nacional.  Diz a lenda que quando a obra ficou pronta, Ivan IV mandou cegar o arquiteto Postnik Yakolev para que não pudesse fazer nada que se comparasse a São Basílio.

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O inesperado interior pintado da Catedral de São Basílio.

À frente da igreja fica o monumento a Dmitri Pozharsky e Kuzma Minin, heróis da resistência russa contra os poloneses, nos chamados “Tempos de Dificuldades”, os primeiros trinta anos do século XVII.  Bem perto está a pequena capela com cúpula em pirâmide que foi incluída em 1588 para ser a tumba de São Basílio, o Bendito.

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A catedral de São Basílio com a torre central e quatro das suas oito torres relembrando o cerco de Kazan.  À esquerda o monumento aos heróis da resistência e à direita a tumba do santo.

Não é uma visita exatamente fácil, as escadas são toscas em alguns lugares, a ponto de minha companheira desistir.  De minha parte, acho que valeu.

Cansadas, hora de voltar para o hotel ainda com o dia claro.  Fomos até um terminal de taxis onde nos pediram cem dólares.  Sabia que era roubo.  Decidi voltar de metrô mesmo tendo que caminhar em torno do estádio.  Minha companheira quase entrou em desespero porque tinha medo, justificável, daquele idioma que não falávamos com um alfabeto que não entendíamos.  Argumentei que seria como comparar desenhos.

Localizei o hotel no mapa, marquei a estação. Na bilheteria de onde estávamos mostrei o destino, importante porque se paga por trajeto.  Bilhete na mão e já com a indicação de qual estação deveríamos fazer a troca de trens.  Descemos as escadas e mostrei para a guarda o nosso destino e apontei direita e esquerda; ela entendeu que perguntava pela plataforma e nos levou até lá.  Contamos as estações, acompanhando os nomes pelo mapa.  Desembarcamos, novas indagações à base de gestos e sorrisos, encontramos nossa nova plataforma.  Minha companheira estava pasma com a minha desenvoltura e repetia que não acreditava que estava dando certo.  Enfim chegamos, subimos ao nível da rua e logo vimos as luzes do nome do hotel.  Ela me perguntou se eu tinha estudado russo, e riu muito quando respondi que tinham sido as aulas do trem.  Essa aventura rende gargalhadas todas as vezes que nos falamos.

Nesta noite o Grupo Azul já não existia.  Tentei no balcão do hotel descobrir um jeito de ir ao circo com uma agência de viagem, mas não consegui.  De taxi nem pensar.  De metrô era abusar da sorte e teria que caminhar bem tarde o contorno do estádio.

O outro dia foi quase perdido, com viagem de avião no meio do dia para São Petersburgo.  Chovia e isso era problema.  As estações ferroviárias são monumentais, além de bonitas e bem cuidadas, com amplos espaços.  Mas os aeroportos ainda eram dos tempos soviéticos, quando uma minoria viajava de avião.  Não existiam salas de embarque.  Esperava-se na rua até que chamassem e mostrassem uma placa com seu número de voo.  Aí entrava, fazia o check in, despachava a bagagem e ia direto para o embarque.

O casal brasileiro também faria o mesmo voo e ficamos encolhidos junto da parede para escapar dos chuviscos.  Na hora de pesar a bagagem, cobraram o valor de meio quilo que eu tinha de excedente.  A trabalheira que deu para pagar quase valia mais a pena tirar algum sapato da mala.

O avião, de fabricação russa, era antigo, barulhento, feio, cheio de remendos na forração das paredes.  O assento não era tão desconfortável quanto se possa imaginar.  Mas pousar bem foi um alívio.  E desta vez o hotel era a cinquenta metros da principal avenida.

Logo na chegada percebi que São Petersburgo não era a valha Leningrado.  A Nevsky Prospekt que conheci era outra.  Só o túnel do tempo para explicar.  Em comum, só a multidão.

Nevsky 1985

Nevsky Prospekt em 1985: muita gente e muito espaço.

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Nevsky Prospekt em 2007: muita gente, carros, trilhos e publicidades.

Sai para olhar aquela cidade bonita, que eu conhecera vazia e agora dava show de movimento e tráfego.  Vários edifícios estavam com telas protetoras, passando por restauração antes das festas dos trezentos anos da cidade.

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Um dos prédios que gosto na Nevsky Prospekt, o da Livraria Zinger.

Pontes e canais enfeitavam o conjunto.  Eu cada vez mais admirava a ideia visionária de Pedro o Grande, czar entre 1682 e 1725 que criou a cidade para ser sua capital com ares europeus, que foram a tônica de seu governo.  Para modernizar a Rússia obrigou os homens a raspar as longas e descuidadas barbas e modificar seus trajes.  A cidade continuou sendo capital e sendo bem tratada por seus sucessores.  Acho muito mais bonita que Moscou.

Fiz algumas compras e fui jantar num shopping, onde acabei conversando em inglês com a rapaziada que estava por lá.  Eles gostam de falar outro idioma, talvez por quererem mostrar que se misturam ao resto do mundo, que não há mais o isolamento antigo.

Primeira manhã, eu e o casal vindo do trem tivemos visitas começando pelo Museu do Ermitage, um mundo de palácios interligados a partir do palácio de inverno de Catarina a Grande, uma plebeia alemã viúva do czar Pedro III, que tomou para si o poder e se tornou uma das maiores governantes russas.  Apesar das maravilhas, consegui ver o que havia de arte e construção sem o frisson da primeira vez.  É compreensível, o impacto não se repete.  Mas é uma visita imperdível e indescritível.

Depois fomos à Fortaleza de São Pedro e São Paulo.  Ali dentro, a catedral de mesmo nome, que eu não conhecia pois era um dos locais proibidos no regime soviético.  No rico interior de traços europeus, mas cheio dos tradicionais ícones preciosos, estão os túmulos dos czares russos a partir de Pedro.  Numa capela especial fica a família de Nicolau II, junto da imagem dourada no pedestal mostrando que foram canonizados como “Mártires do comunismo”.  A cerimônia do enterro foi assistida por Boris Yeltsin, sempre ele.

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Interior da Capela de São Pedro e São Paulo.

Para a tarde foram oferecidos opcionais começando por passeio de barco pelos canais, que eu estava doida para fazer, afinal, passear de barco em canais é um dos meus programas favoritos.  E esse não foi diferente.

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Pelos canais se observa bem como a cidade é bonita, homogênea e ainda segue os antigos planos de Pedro o Grande.

Depois de cruzar canais apreciando o plano urbanístico de Pedro I, respeitado até hoje no que diz respeito a conservação dos edifícios, sua altura e padrão de construção, chega-se ao Rio Neva.

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No trecho do rio Neva, a Fortaleza de São Pedro e São Paulo onde se vê bem o portão onde paravam os barcos que levavam os presos que iriam desaparecer.

Continuamos para o palacete Yossukov onde foi assassinado Rasputin, aquela figura misteriosa e meio lúgubre que prometeu muitos eventos miraculosos à czarina Alessandra, inclusive curar a hemofilia do herdeiro de Nicolau II e fez uma grande confusão no império.  Para terminar, um espetáculo de música e dança no Palácio Nikolayevsky.    No intervalo da apresentação de música, um coquetel com delícias salgadinhas e vinhos russos.

Na manhã seguinte o opcional foi a Tsarkoe Selo, conhecido por Pushkin, residência de verão de Catarina.  Numa construção que foi crescendo e tornando-se uma riqueza, um detalhe interessante é que vários lustres são feitos em “papier maché” para ficarem leves apesar do tamanho.

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Um dos salões de Tsarkoe Selo ou Pushkin.  Na decoração predominam ouro, bronze dourado e madeiras raras.

Sua sala mais famosa não é original.  É o Salão de Âmbar, incorporado a uma das alas do palácio e tem uma história bastante original.  E não é possível fotografar.

Quando o Czar Pedro esteve em 1709 no palácio de Frederico Guilherme da Prússia, ele viu a sala toda decorada em resina de âmbar e não resistiu – pediu-a de presente.  E ganhou.  Depois de passar por alguns palácios russos, estava em Pushkin quando os nazistas saquearam São Petersburgo (na época se chamava Leningrado).  O destino das peças é um mistério.  O que existe hoje é uma réplica, feita graças aos desenhos e pinturas que a representaram por décadas.

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Jardins nos fundos de Pushkin.  Quando entramos chovia, na saída um dia de sol.

A parte da tarde incluiu visitar o interior da Catedral de São Isaac, que eu já tinha visitado na Leningrado soviética servindo como museu.  Agora reconsagrada, reassumiu funções de templo.

Dali seguimos para outra igreja que tinha me encantado durante o passeio de barco, a Catedral da Ressurreição de Cristo ou Catedral do Sangue Derramado, erguida por ordem do Czar Alexandre III sobre o local do assassinato do seu pai, o czar Alexandre II, o Bom Czar, em 1881. O edifício e suas obras de arte estiveram ameaçados de destruição por várias vezes durante o período soviético.  Escapou porque servia como uma ótima cavalariça.

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Catedral do Sangue Derramado e uma das pontes decoradas sobre os canais.

Nesta noite jantei num restaurante na Nevsky Prospect semelhante aos nossos restaurantes a quilo.  Comi, entre outros pratos do bufê, uma conserva de alhos deliciosa, mas daquelas impossíveis de comer sem ter em vista uma escova e uma pasta de dentes.  É alguma coisa bem típica desta parte mais ocidental, como Ucrânia e Belarus.

Só sairia da cidade para o aeroporto no meio da tarde e tentei de várias maneiras conseguir uma visita a Peterhof, ou Petrodvorets, o palácio de verão de Pedro, o Grande.  Não havia uma agência de turismo local, o hotel só informava o horário do barco.  Se eu errasse alguma coisa na volta perdia o traslado e consequentemente os voos de volta.  Fiquei muito frustrada.  Encontrei ali uma dificuldade semelhante àquela tentativa de ir ao circo em Moscou.

Gastei minha manhã livre caminhando pela avenida olhando seus prédios, seus postes decorados, suas pontes e me despedindo deles.

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Monumento a Catarina, a Grande.  De princesa alemã a esposa de um czar fraco até ser uma importante czarina.  Com quem ela decidiu aproveitar a própria vida já não importa mais.

Entrei na Catedral do Ícone de Nossa Senhora de Kazan, a maior da cidade e aberta para os cultos religiosos, mas não me pergunte como é.  Muito escura e sem iluminação acesa, não se consegue distinguir nada.  Por fora é imponente, sem a forma tradicional de igrejas, mais parece uma biblioteca ou um grande colégio.  Ali por perto, numa espécie de mercado, comprei uns anéis de âmbar que pareciam uns torrões.  Dei todos e depois fiquei triste por não ter ficado com nenhum.

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Catedral de Nossa Senhora de Kazan.

Fui recolhida no hotel e levada para o aeroporto, o mesmo esquema de esperar do lado de fora da porta.  Voei para Frankfurt e de lá para São Paulo e então para o Rio de Janeiro.  Sequência de voos longa e cansativa, mas as opções diretas ao Rio eram quase inexistentes na época.

Seguramente foi uma das minhas grandes viagens, em todos os sentidos.  Muitos lugares diferentes, paisagens especialíssimas, grandes recordações.  Atravessei dois continentes de leste a oeste, terras e costumes ancestrais.  Foi muito mais que viajar.

Vi uma Rússia diferente da União Soviética, mas uma está presa à outra.  A Mongólia foi melhor que o esperado e muito se deveu ao guia local que infelizmente esqueci o nome.  A China é quase assustadora numa Beijing poluída e superlotada, e parece ser mais amigável no interior.  A experiência da viagem de trem foi ótima, apesar do tempo nas cidades às vezes ser pouco; Ekaterimburgo e Kazan precisavam mais tempo.  Não sei como, talvez porque ficou a curiosidade, gostaria que estivesse incluída Krasnoyarsk.

Foi bobagem minha não ter incluído mais um dia para matar a vontade de rever o Petrodvorets, porém aprendi que por lá tudo deve ser previsto e incluído antes, acréscimos de última hora não existem.

Voltei enriquecida, como em todas as viagens, mas esta foi bem original.

2007 (agosto) – O longo cruzeiro ferroviário – Parte I

Era meu presente de final de carreira.  Estaria totalmente aposentada, depois de alguns atrasos e adiamentos.  Tinha que ser em grande estilo.  A tendência por roteiros exóticos era meu pensamento permanente, conhecer gente diferente, lugares que os turistas brasileiros em geral não dão muita importância.  Tudo precisava ser uma experiência nova.  Nada melhor que uma longa viagem de trem por terras que não conhecia.

♣ O roteiro: Não lembro exatamente quando descobri e me encantei pela proposta de viagem de trem entre Beijing e Moscou.  Ferrovia Transiberiana – o nome dizia tudo.  Na realidade, faria um trecho por ferrovia chinesa, depois um ramo lateral na Mongólia e finalmente chegaria ao trajeto principal da Transiberiana quando entrasse na Sibéria.  Ainda seria verão.  Por causa de uma complicação na emissão do aéreo, resolvi ficar uns dias em Zurique, mais um presente meu para mim.  Acrescentei a linda São Petersburgo ao final.  Seriam 25 dias no total.

Quando decidi fazer o “Zarengold”, trem fretado por empresa alemã percorrendo parte da Ferrovia Transiberiana, já estava meio em cima da hora.  Europeus se planejam com muita antecedência, mais do que eu.  Entrei na fila esperando por desistências, e a vaga apareceu.  Faltou bilhete aéreo até Frankfurt, que conseguiria somente via São Paulo e Zurique e mesmo assim, só na classe executiva.  O trecho de Frankfurt até a China e a volta saindo de São Petersburgo não tinha problemas.  Não era uma ocasião nem uma viagem qualquer, era comemoração das boas, paguei.

Era a minha primeira viagem só usando câmaras digitais para fotos.  Lamentava abandonar minha companheira de tantos anos, mas agora tinha um equipamento mais leve, inclusive por causa dos muitos rolinhos de filme.  Não precisaria trocar lentes, era só usar o zoom.  Cartões de memória e baterias recarregáveis também ocupavam menos espaço.  Mas durante a viagem aconteceu uma perda irreparável por uma bobagem minha com um cartão de memória (mas não formatei o cartão não; aguarde).

A estada na Suíça era só em Zurique, onde cheguei numa quarta-feira de agosto, pleno verão, tarde de sol.   Não tinha transfer na chegada, sabia que a estação de trens era meio longe do hotel e não conhecia as distâncias até a cidade. Paguei por um serviço de transporte em micro ônibus, super eficiente, até a porta do hotel.  E já ficou pago e marcado para o dia do traslado de saída.

Depois de me alojar, fui aproveitar a tarde longa.  Matei o tempo fazendo um passeio de barco pelo rio Limmat e lago de Zurique.

S1 Centro de Zurich

No centro de Zurique junto do rio Limmat.

Para mim estava frio, mas tinha gente nadando, a água é limpa a ponto de permitir isso em pleno centro da cidade.  Passo seguinte, jantar uma fondue no centro antigo, com um vinho branco.

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Uma festa com banda e tudo em Niederdorffstrase, no centro antigo.

Já sabia de antemão quais passeios queria fazer e contratei no próprio hotel.  Um dia para subir o Jungfrau e outro para subir Monte Pilatus e visitar Lucerna.

O passeio a Jungfrau foi deslumbrante.  O caminho, a subida de trem, o cheiro do campo, o barulho dos sinos das vacas, a vista das montanhas e dos campos, é tudo delirante.

S2a Começando a subir

Começando a deliciosa subida até Jungfrau.

Achei uma delícia subir aqueles campos de montanha verdinhos, muitas vezes ouvindo o barulho dos guizos das vacas leiteiras.  Algumas até apareciam, era como se dessem as boas-vindas.

S2b Região do Kleine Scheidegg

Subindo por Kleine Scheidegg.

A uma certa altitude é preciso trocar para um trem com cremalheira e todo com janelas fechadas para enfrentar o frio que vem das geleiras.

S2c Parada para troca de trem em Lauterbrunnen

Parada para troca de trens em Lauterbrunnen.

Teve gente achando chato o trecho em que o trem sobe por dentro de um túnel escavado na rocha, sob a geleira.  É escuro, mas é uma obra incrível.  O trem faz uma ou duas paradas para desembarcar e ver a geleira ali bem perto, juntinho das aberturas naturais da rocha.  Lá no alto, a mais de 4000 metros de altitude, acima das nuvens, galerias com esculturas no gelo e um deleite para os olhos na paisagem em azul e branco.

S2d Mirante Sphinx

Mirante Sphinx no alto do Jungfrau.  Vento muito frio.

O movimento é muito e para comer qualquer coisa foi complicado.  E a comida é meio ruim.

A volta é por outro caminho, mas a paisagem da subida é quase delirante.  O passeio foi fantástico, recheado de coisas bonitas e interessantes.

De volta a Zurique, descobri os restaurantes da estação central de trens, muito conveniente, a cinco minutos do hotel.

No outro dia fui a Monte Pilatus, que não achei tão impactante.

S3a Monte Pilatus

No amplo mirante de Pilatus.

Claro que há belas vistas do alto dos mais de 2000 metros, flores delicadas que de tão teimosas aparecem nas fendas das rochas.

S3b Flores em M Pilatus

Flores na fenda da rocha brotando em Pilatus.

Subida por um lado da montanha de teleférico e descida pelo outro de trenzinho tipo plano inclinado, que termina junto do píer do lago.

S3c Descida em Alpnachstad

A descida de Pilatus em Alpnachstad.

Dali seguiria um passeio pelo lago Luzern, até a cidade do mesmo nome.  E junto do píer estava calmamente reunida uma família de cisnes brancos, filhotes já grandes porém ainda com a plumagem escura.

S3d Casal de cisnes e filhotes

Os orgulhosos pais de cinco robustos filhotes.

Foi usado um barco de transporte urbano que faz a ligação entre as vilas da orla, parando em algumas delas até finalizar em Lucerna, bem de frente para a Ponte da Capela.

O tempo de visita ali seria pouco.  Teria que me concentrar no lugares mais próximos.  E tentar comer alguma coisa.

S3e Chegando a Luzern pelos lagos

Chegando de barco a Lucerna.

Fiquei pela Ponte da Capela, construída em 1333 sobre o rio Reuss, quase chegando à foz no lago, foi pintada com temas católicos no século XVII, quando a Reforma se impunha na Suíça.  Eram mais de cem painéis triangulares acompanhando a forma do telhado.  Junto da ponte, a Torre da Água.

S3f Luzern Ponte da Capela

A Torre da água e a Ponte da Capela.

Eu tinha visto esta ponte antes do incêndio de 1993, e agora ia ver sua versão restaurada e partes reconstruídas.  A ponte e as pinturas foram refeitas.  Como lembrete, alguns trechos foram deixados com as marcas do incêndio.

S3g Interior da Ponte da Capela 2

O interior da restaurada Ponte da Capela.

Na volta, mais uma vez fui aos restaurantes da estação de trens.

Ainda tinha a manhã livre e fui até a estação de trens aproveitar para comprar dermo-cosméticos na “Apotheke”.  Estavam montando uma feira de queijos no grande saguão da estação.  A gulodice deu cambalhotas, mas só inaugurava no fim do dia, sem possibilidades de esperar.

Embarquei para a China, via Frankfurt e no desembarque em Beijing fiquei procurando por alguém com meu nome num papel.  Ninguém.  Rodando para lá e para cá, percebi que havia um grupo de alemães para o mesmo trem, e já se reuniam com seu guia debaixo da bandeirola com a cor do seu grupo.  O guia chinês não falava inglês.  Uma passageira serviu de intérprete, expliquei o caso, mostrei meus documentos da viagem e acabei indo para o hotel junto com eles.  Pedi ao rapaz que informasse à agência sobre a minha chegada, e ficou tudo acertado.  Ainda bem, tudo na China tem tanta gente que pode ficar confuso.

No hotel a minha reserva estava correta, não tive nenhum problema no check in.  Mais tarde descobri que a minha data de chegada constava na documentação deles como sendo para o dia seguinte, como o restante dos brasileiros.  Sempre preocupada em não perder inícios de viagens nem conexões, eu estava chegando a Beijing um dia antes do necessário, como muitos passageiros fizeram.  Nunca soube de onde partiu o erro.  E entendi menos ainda o hotel estar certo.

Chovia em Beijing, mas não dava para perder tempo.  Dormi um pouco e fui para o balcão do hotel procurar um passeio que não constasse da programação de visitas já incluída.  Descobri um que levava aos bairros antigos com suas vielas e à Torre do Tambor.

Seria só eu a fazer o passeio e teria uma guia jovem e simpática, disposta a ser boa anfitriã.  Fui levada para uma parte antiga da cidade, que agora estava toda arrumada, cuidada e pronta para ser visitada.  Era a face maquiada da antiga Beijing, de residências pequenas e serviços coletivos. Imagino que tenham sido partes como esta que meus pais conheceram lá pelos anos 1970, já sendo demolidas para erguer o que se vê hoje.  Eram pessoas especiais que viviam por ali.   Senhores idosos jogando Majong, senhorinhas se escondendo da chuva fininha.

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Um jardim de uma casa no “hutong”.

Não posso imaginar como seriam esses “hutongs” quando eram realmente ocupados, quando eram o dia a dia da cidade.  Agora era simpático, limpo, tranquilo.  Já na saída, encontramos uma família com várias crianças, que me olhavam curiosas.  A guia foi quem organizou a foto.  Ficaram felizes dando aquela risadinha chinesa quando viram o resultado no visor da minha nova câmara digital.  O equipamento tinha seu lado bom.

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Rindo com a garotada.

A entrada da Torre é por uma loja com irresistíveis chás, incensos e enfeites de seda.  Lá no alto, os imensos tambores já não são importantes, não marcam mais os tempos na vida das pessoas.  Foram até proibidos de tocar à noite, com a alegação de que o barulho é intenso e vai muito longe.  Só que na sua origem, era essa a sua finalidade.  Ainda cheguei a tempo de ver uma rápida demonstração que fazem à tarde, o som é poderoso.

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O Templo do Tambor.

Fui jantar perto do hotel.  Com a confusão no aeroporto, não tinha trocado dinheiro e levei dólares para pagar.  Avisei que não tinha RMB, o nome que eles agora usam para o Yuan; a resposta foi que não havia problemas.  Depois da comida saborosa, um frango com molho de frutas, me informaram que o estabelecimento não aceitava moeda estrangeira, mas que no fundo da loja havia uma casa de câmbio.  Não entendi a lógica, mas troquei e paguei.

Já ia dormir quando o telefone tocou.  Era o guia local me avisando que parte do grupo em língua inglesa teve problemas com os voos.  Assim, o passeio da tarde do dia seguinte seria feito adiante, sem nenhuma perda.  Os que já tinham chegado, teriam o dia livre até o encontro de todos para o jantar no hotel.  Então o jeito era descobrir o que fazer.

Amanheci pensando em pandas, em ir ao zoológico.  Quando estava saindo encontrei duas brasileiras que chegavam.  Dei um olá, trocamos algumas palavras e uma delas quis ir ao zoo comigo.

Fomos de táxi e nesta saída, conheci o sistema de cartões escritos em inglês e em ideogramas.  De um lado é o cartão do hotel, bilíngue.  Do outro são os principais pontos turísticos, onde se marca a qual quer ir.  Tudo nos dois idiomas.  Para voltar, mostra o lado do hotel.  Ao final da corrida o taxímetro imprime o tíquete com o valor a pagar.  Os números são os mesmos nossos.

O lugar não é fantástico, mas vimos os pandas e mais algumas espécies da região.  Os pandas pareciam bem, relaxando e dormindo.  Voltamos em outro táxi, ela ainda muito cansada da viagem precisava dormir.

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Descansando no maior conforto!

Eu fui conhecer uma lanchonete de rede internacional, uma das patrocinadoras dos Jogos Olímpicos na China, que seriam no ano seguinte.  O paladar do sanduíche é sempre o mesmo, o do refrigerante muda um pouco por causa da água, mas o copo plástico comemorativo era único.  E assim aparecia o primeiro trambolho para ocupar espaço na mala.

Por sugestão do hotel, que sempre considero uma boa fonte de informação, fui de taxi (confiante no esquema dos cartões) conhecer o Templo do Lama, o único santuário budista de Beijing que não foi destruído durante a revolução cultural por causa da influência do ministro Zhou Enlai.  Ele batalhou pela sua salvação argumentando seu valor artístico.  Muita gente frequenta o templo e faz suas orações, não é mais proibido.

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Tijolos coloridos e a sempre presente figura do felino.

O ingresso foi guardado dentro do copo olímpico, pois é um pequeno disco com um filme sobre a história do templo.  Narrado em mandarim, mas não importa, recordação é recordação.  E o copo já tinha alguma utilidade.

Fiquei impressionada com a poluição do ar.  Não se via o céu.  O azul não existia.  Nem o negro da noite; havia um cinzento borrado.  As pessoas ali não saberiam como é uma estrela.  Nariz fungando e olhos ardidos.  Fazia muito calor.

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Tinha chovido e mesmo assim a percepção da poluição era forte.

Naquela noite era o jantar de encontro do grupo.  Cinco brasileiros, todos na opção de serviços em inglês.  O guia chinês enfim apareceu e ficou logo claro que não tinha muita segurança no que estava fazendo.  Eu tinha conhecido Beijing na minha primeira aposentadoria, esse guia agora não seria melhor que o Zhu.

Seriam dois dias de visita com as Muralhas, Templo do Céu, Caminho Sagrado, Praça da Paz Celestial, jantar de pato laqueado.

C3 Muralha 1

A muralha que parece seguir ao infinito.

Conheci um lugar diferente de acesso à muralha.  Esse era mais tranquilo, mais verde.  Sempre impactante, uma força que corresponde a cada pedra.

C3 Muralha 2

Gosto desta imagem da muralha com a nova rodovia passando bem perto.  Tempos diversos.

Fazia muito calor e houve uma pausa para almoço no hotel.

À tarde continuaram as visitas e fomos ao Caminho Sagrado, com seus ministros e animais.  É uma visita que me agrada, não sei se pelo amplo espaço ou pela sua claridade.

C3 Caminho

Guerreiro no Caminho Sagrado.

A tarde terminou na Praça da Paz Celestial, onde comprei umas 10 ou 12 pipas de papel de arroz que na volta distribuí para a criançada.  Uma delas ficou pendurada no meu quarto por anos, até quase se desfazer.

C3 Praça da Paz

Praça da Paz Celestial e ao fundo o Congresso do Povo.

As visitas redistribuídas por causa dos problemas de chegadas não foram prejudicadas.  Pelo menos foi o que eles disseram, mas acho que faltou o Palácio de Verão.

À noite, jantar com pato laqueado, que não acho nada demais.  Há comidas muito mais saborosas por lá.  Mas vale a tradição e sua nobreza.  Este jantar foi num centro cultural e de artesanato perto do hotel e na volta vinha caminhando com uma senhora sul-africana, que seria minha vizinha de cabine, quando fomos abordadas, mais especificamente ela, por alguns jovens.  Queriam de qualquer forma que ela os acompanhasse num passeio noturno, não iriam cobrar nada, apenas queriam ter a oportunidade de falar inglês e praticar antes das Olimpíadas.  Minha cabeça voou no tempo e no espaço até a beira do lago de Guilin, quando Marilza e eu sofremos uma abordagem bem semelhante.  Saí puxando por ela até estarmos dentro do hotel.  Só aí comentei sobre minha lembrança.  Não sei se ela se aborreceu, mas achou minha explicação sem sentido, preocupação desnecessária.  Ela não acreditou que houvesse risco algum.  Fiz o que achei que devia e repetiria se necessário.

O último dia em Beijing começou no Templo do Céu, um símbolo extra oficial da cidade.  É realmente muito marcante com seus quatro níveis.

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Templo do Céu com seu globo dourado do Imperador Celestial.  Acho esse templo a cara de Beijing.

Na saída, um outro momento chinês – os idosos praticando Tai Chi Chan no parque junto do templo.  Eles mantem a tradição num país onde não existe sistema previdenciário e o único filho deve sustentar os pais.  Esses exercícios se tornam importantes socialmente.

C4 Tai chi no templo

Tai Chi Chuan no parque.  Coordenação invejável dos movimentos.

A última visita foi a Cidade Proibida.  Ali não há o que discutir, é para encher os olhos e deixar-se deliciar com aquele vermelho.  E sem esquecer de olhar os telhados.  Mas foi aí que senti mais falta de um bom guia.  A visita ficou bem sem graça.

C4 Cid Proib pavilhões

Pátio entre os pavilhões dentro da Cidade Proibida.

As visitas de Beijing terminavam com o almoço e dali seguimos para o embarque num trem de linha convencional.  Acho que o embarque foi na Estação Oeste, uma enormidade de tamanho e uma quantidade assustadora de gente.  As malas estavam despachadas desde de manhã, na saída do hotel, para o vagão de carga.  Arrastando maleta de mão, corríamos atrás do guia apressado e o medo de se perder ali fazia as pernas ficarem mais ágeis.  Tínhamos cabines para passar a noite e logo foi servido o chá.

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Não tinha chuveiro no trem, mas tinha chá em serviço de porcelana.

Mas não havia chuveiros.  O calor do dia, caminhando debaixo daquele mormaço poluído, fazia seus efeitos.  E a brasileirada tomou banho de pia, refrescando-se na água fria.  Um alívio antes das 14 horas de viagem.  Ainda vimos com alguma claridade a saída de Beijing.

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A ferrovia seguindo na direção oeste.

O jantar também seria a bordo.  O sono foi bom.

Ao amanhecer já estávamos perto do destino, a cidade de Erlian, da qual nunca tinha ouvido falar.  Nada de bagagem para atrapalhar o passeio.  E na saída nos esperavam bicicletas tipo riquixá e seus condutores, que iam nos levar pelas avenidas amplas e surpreendentes da cidade.  A primeira coisa que me chamou a atenção foi que em cada uma delas havia um desenho diferente de luminária.

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Avenida em Erlian.

Nunca tinha estado no interior da China e encontrar uma cidade moderna, bem ordenada, limpa, espaçosa foi uma surpresa.

De repente surgia uma cena inusitada, com mais jeito daquilo que se imagina ser a China.  Ou do que foi a China.  Havia grupos de pessoas sentadas no chão pelas ruas, conversando.

E o calor de Beijing nos acompanhou a Erlian.

C5 Erlian pelas ruas

Contraste nas ruas.

No mercado central a propaganda vinha em três idiomas, nenhum deles inteligível para nós.

C5 Erlian mercado

Perguntei que idiomas eram aqueles – mandarim, mongol e tibetano.    No interior, o colorido de verduras e frutas.

A cidade surpreende até pelo tamanho e variedade de lojas nos seus centros comerciais.  Num deles comprei saquinhos de chá de flores, com flores desidratadas inteiras dentro.  Já em casa, quando fui beber, nem era tão gostoso, mas ficava lindo numa jarra transparente, flores abertas.

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Num dos centros comerciais da cidade, a mesma dificuldade de idiomas.  O máximo que se via era o alfabeto ocidental com as palavras locais.

Depois de passarmos o dia em Erlian, era hora de trocar de trem.  Por questões de “segurança”, a bitola dos trilhos chineses é diferente da bitola russa (melhor dizendo, soviética, já que é desta época) e mongol (que fora invadida pelos soviéticos).  O trem fretado não poderia chegar até Beijing.  Na fronteira os trens param lado a lado, em trilhos diferentes.  As malas grandes, identificadas desde a saída do hotel, já estavam nas cabines.  As maletas com que passamos a noite estavam reunidas para cada um indicar a sua.  A organização chinesa com as malas sempre me impressionou.

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O trem chinês vermelho e o Zarengold azul.

Hora de dizer adeus, China; olá Mongólia.

Saímos agora no trem fretado “Ouro dos Czares”.  Paramos logo depois da fronteira para uma recepção mongol na localidade de Zamin Uud, no Deserto de Gobi.  Música, comida, roupas tradicionais, instrumentos musicais regionais e camelos.  Camelos mesmo, os de duas corcovas, afinal ali foi região antiga da Bactria, que dá nome científico a esses animais.

M1b Camelos Zamin

Rebanho de Camelus bactrianus, legítimos.  Muitas fêmeas grávidas.

Ali ouvi pela primeira vez na vida os cantores de garganta, uma técnica de canto quase gutural, característica deles.  Primeiro soa estranho, depois o ouvido se acostuma e chega a ser melodioso.  Foi um bom começo.

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Roupas tradicionais, instrumentos locais e cantores de garganta.  Sons originais.

Ali também se podia visitar sem restrições um “ger”, nome mongol para a tenda nômade.  Essa era para turista ver, as verdadeiras têm um certo ritual que conheceríamos depois.

M1c ger interior

Interior do “ger”.  No centro sempre uma panela pendurada.  A estrutura de madeira tipo grade pantográfica que permite dobrar e ficar mais leve para transporte.

Meu grupo em inglês tinha dois casais e uma senhora sul-africanos, um casal de origem indiana de Durban, e os cinco brasileiros.  Cada grupo tinha uma cor e o nosso Azul era de 14 pessoas.  Ali encontramos nossa condutora, a eficiente e doce Ekaterina.  Em cada cidade, cada grupo teria também um guia local.

Jantamos tarde, já no trem em movimento e a viagem seguiu durante a noite para a capital da Mongólia, Ulaan Baatar ou Ulan Bator.

Nos arredores da cidade viam-se muitos “ger”, as tendas mongóis.  No mesmo terreno onde estava a casa em estilo ocidental estava montada a casa tradicional.  Genial.

M2a Chegada

No início da manhã o trem vai percorrendo as estepes e as montanhas Altai, numa paisagem que vai alternando ger, casas e com muita criação de gado.

Estar nestes países tão distantes, geográfica e culturalmente, sempre me deixa com uma espécie de ansiedade boa.  Tenho sempre a expectativa de estar no meio de gente nova, situações originais, comidas diferentes, hábitos talvez estranhos.  É possível que a cada dia isso fique mais difícil por conta de viagens serem mais fáceis, globalização, filmes, intercâmbios, influência da internet.  Desembarquei em Ulaan Baatar me sentindo assim.  Seriam duas noites no Hotel Bayangon, malas grandes ficavam no trem.

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Logo na chegada ao hotel, uma espiada por uma varanda.  Uma cidade cheia de edifícios e bem ocidentalizada.

O serviço da empresa alemã se mostrava organizadíssimo.  Os grupos raramente iriam se encontrar durante as visitas dos próximos dias.  Todos faziam as mesmas visitas, mas em ordenamento diferente, não superlotando um pequeno museu nem enchendo de gente as fotos num monumento.  As refeições feitas nas cidades também eram distribuídas por restaurantes diversos.

O rapaz que nos ciceroneou na Mongólia foi mais que um guia, muito acima de qualquer expectativa.  Deu show, falou da vida deles, contou suas histórias recentes com o tempero de quem viveu aquilo.

Seria uma montanha de informação histórica, já que notícias daqueles lados raramente chegam para nós e tudo era novidade.  De forma muito resumida, aquela região sempre foi de povos nômades.  Houve um período turco (o atual Turcomenistão é bem próximo) que foi até o século IX, quando começou o disperso Império Uigur.  A unificação veio com Chinggis Khan a partir do século XIII.  Grande conquistador, levou tropas e descendentes até a Europa (Hungria e Polônia, além da Rússia). Ele criou o Império Mongol e mesmo algumas gerações depois, todos os povos da região buscavam algum parentesco com seu grande herói.  O período dos Khan foi até o século XVII e terminou na invasão chinesa com a perseguição e escravidão ordenada pela dinastia mandchu.

A situação mudou em 1911 quando caiu o último imperador chinês.  Alguns anos depois o país se declarou independente e começou a buscar reconhecimento internacional.  Após a Segunda Guerra Mundial era total a influência soviética, que passou a determinar o modo de vida e suprimir tradições.  A nova guinada veio com a dissolução da União Soviética, quando em 1990 se declarou um país multipartidário e promulgou nova constituição em 1992 e passou a ser administrado como país sujeito às normas de mercado.

A palavra khan designa governante.  Chinggis Khan é o título de grande governante; seu nome era Temuigim, que significa homem de ferro.   Nosso guia fez questão de frisar que a pronúncia Gengis, popular no ocidente, é errada.  Ele foi sucedido por seu filho Ugudei Khan e por seu neto Kubilai Khan.

A primeira capital da Mongólia foi Karakorum, da qual só restam ruínas.  A capital foi mudada para a antiga Urgol, e seu nome alterado para Ulaan Baatar, que significa guerreiro vermelho.  Nela se misturam as residências tradicionais e os prédios de estilo ocidental.

A primeira parada foi na praça Shukhbaatar, onde ficam o Parlamento e a sede do governo.  A praça é uma homenagem ao responsável por pedir apoio soviético em 1921 contra a dominação e extermínio praticado pelos chineses da etnia mandchu durante quase três séculos.

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Monumento a Shukhbaatar, no centro da praça que leva seu nome.

Nesta mesma praça a população se concentrou pedindo o fim da interferência russa em 1990.  E nesta mesma praça fica aquele que talvez seja o mais reverenciado do país, o criador do Império Mongol, Chinggis Khan.  É ali que grandes eventos acontecem, e havia um casamento.

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Na praça Shukhbaatar, o grande monumento a Chingis Khan, tendo à esquerda seu filho Ugudei Khan e à direita seu neto Kubilai Khan.

E começou a confraternização com um casal de noivos e suas famílias.  Nós estrangeiros nas fotos com eles e eles nas nossas fotos, e o guia traduzindo para lá e para cá.

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Confraternização com muita simpatia e fotos.

Visitamos palácios e templos, temperados com casos recentes que o guia contava.  Um dos mais interessantes foi sobre o esforço local para reverter o encolhimento do idioma e alfabeto locais, que foram proibidos de usar durante os muitos anos da ocupação soviética.

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A imagem de Chingis Khan numa encosta.

Foi um dia cheio, produtivo, muita aprendizagem.

Sempre tem a visita a uma loja especial.  Peças lindas e absolutamente inúteis para brasileiros.  Cachemira e todo tipo de lã em agasalhos pesados.

Depois do almoço, visita ao Templo do Lama Choijin, transformado em museu quando Stalin impôs à Mongólia o regime comunista soviético.  Foi construído por um monge que era irmão do último Khan no início do século XX, tendo peças desde o século XVII.

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Um dos seis templos do complexo de Choijin.

Para completar, haveria uma apresentação extraordinária da Grande Orquestra Nacional.  O volume de turistas no trem e outros grupos chegados naquele dia valiam essa apresentação.

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Pano de cena no palco do Teatro da Ópera de Ulaan Baatar.

Músicas, trajes, instrumentos e cantos tradicionais.  Achei sensacional.  Na saída comprei um dos CDs da orquestra, que é prazeroso de ouvir e relembrar.

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Grande Orquestra Nacional com seus instrumentos regionais e roupas tradicionais.

As refeições na cidade não assustaram.  Um pouco da comida mongol, rica em gordura, e “comida turística”, aquela neutra e comum.

Da janela do quarto do hotel dava para ver um pedaço da cidade iluminada.

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Luzes e lua cheia sobre a Avenida Chinggis.

Neste segundo dia mongol começamos pelo Monastério Budista de Gandantegchenling – mais conhecido por Gandan – instalado neste lugar em 1838 e recebeu prédios e antigas imagens de outros lugares.  Em 1938 o regime comunista suprimiu comunidades religiosas mongóis, eliminou monges, destruiu 900 templos e monastérios.  Alguns edifícios de Gandan foram mantidos como alojamento de soldados e estábulos.  Retomou atividades religiosas e a escola monástica de budismo Mahayana em 1990; tem escola para órfãos e centro de medicina tradicional.

É em Gandan que fica Migjed Janraisig, símbolo da independência para os mongóis, construído por Bogd Khan, 8ª reencarnação do último governante secular e espiritual da Mongólia. No seu interior fica a imagem de Janraisig, o Buda da Compaixão, com 26,5 m de altura.  A imagem original foi destruída em 1938 e a nova é de 1996, feita em cobre da mina de Edernet e recoberta de ouro.  Não pode ser fotografada.  Logo perto, a grande Roda das Preces.

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Gandan.

Depois, uma olhada no museu aberto sobre a Rede Ferroviária, uma herança soviética.

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Locomotivas soviéticas.

A cereja do dia era a visita ao Parque Nacional de Terelj, no vale central do país, chamados de Alpes da Mongólia, duas horas ao sul de Ulaan Baatar, onde existe uma área rica e montanhosa.

Já no parque, que é uma área para prática de antigas tradições, incluindo o xamanismo, uma parada no caminho para ver um “ovoo”, o monte sagrado onde se jogam três pedras e se amarram echarpes de seda verde e amarelo (natureza), azul (céu) ou vermelho (fogo).

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O sagrado “ovoo”.

Foi quando tirei uma foto apaixonante de uma menininha.  Suas bochechinhas queimadas de frio davam uma enorme vontade de cuidar e proteger.  Dava uma certa tristeza pelo seu jeitinho meio descuidado, sentadinha perto do “ger” de sua família.

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A delicada lourinha mongol.

No parque ainda vivem famílias nômades, seus iaques e tradições.  Mulheres somente do lado direito de quem entra no “ger”.  Oferecem o kumys, que é o leite fermentado de égua, para provar.  Eu não iria perder.  Tem gosto bom, de iogurte bem ácido.

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Entre as pessoas da família.

Um comentário do nosso guia que anotei em minhas fotos é sobre o hábito nômade de não fazer provisões para o gado durante o inverno, gerando morte nos rebanhos e prejudicando principalmente a alimentação das crianças.  Apesar de protestos dos mais tradicionalistas, agências internacionais vêm trabalhando para estabelecer um novo padrão que não perca a cultura nômade.

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Os “ger” e os pertences da família nômade em Terelj..

Almoço de comida tradicional, sempre com muita carne, servido numa enorme tenda.  Esqueça colesterol e triglicerídeos, a gordura está toda lá.

  Para a tarde, uma demonstração dos eventos sociais e desportivos que ocorrem durante o feriado nacional de Naadam, a festa nacional que acontece entre 11 e 13 de julho.  São disputadas competições com as três funções masculinas.  A primeira é a luta, depois a arqueria e corridas a cavalo (sem sela, é claro).  A empresa alemã que faz o fretamento do trem cobra caro mas oferece um serviço de primeira.  E tem prestígio para conseguir a participação dos campeões do ano.

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Os campeões do Naadam de 2007 fazem demonstração e explicam as regras da luta.

Na sua origem, apenas homens competiam, e as mulheres participavam com a música.  Mas elas já entraram pelo menos no arco e flecha.  O mais velho dos arqueiros, depois de explicar sobre a confecção e o manejo diferente dos arcos apresentou orgulhoso sua neta como competidora.  Todos trajavam suas roupas de feriado e competição.  Uma tarde esplêndida.

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Os adolescentes ainda não podem competir porém já participam mostrando suas habilidades sem sela.

Cães peludos acompanhavam tudo, sem se manifestar.  Alguns iaques apareceram e se deixavam acariciar; o pelo sedoso é muito suave ao tato.  Uns 2 ou 3 fios ficaram na minha mão, e guardo junto das fotos.

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Iaques, que eu nunca tinha visto.

Até ali não tinha conseguido nem um suvenir para minha coleção.  Na volta à capital, paramos num centro comercial e consegui um ímã de geladeira, que se deformou logo depois da chegada, e uma miniatura de “ger” feito em lã de camelo e tão perfeita que tem até a exígua mobília que eles usam.  É um dos meus favoritos dentro da minha vitrine.

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No centro de Ulaan Baatar.  A quantidade de carros e utilitários particulares chama atenção e o engarrafamento é frequente.

Jantar de despedida com música, acrobatas e contorcionistas, deixando gostinho de queria ficar mais.

2007 (março e abril) – Além de Sossusvlei

África, sempre África.  Na viagem anterior para lá, vi pela janela do avião uma praia de areia quase vermelha; eu decidi conhecer o litoral do oceano Atlântico na Namíbia.  Tinha pouquíssimas informações sobre o país, mas sabia que a operadora dos meus safaria no Botswana fazia trajetos por terra ou montava o esquema de “camps”.  Achei mais interessante um dos roteiros com deslocamentos em jipes conhecendo vilas e o território.  Entrei em contato por telefone com o representante deles no Brasil e começou o suspense.  Ninguém se inscrevia, e eles exigiam pelo menos dois passageiros.   O plano alternativo, aquele de ir de um acampamento a outro, que não depende de número de passageiros mas é mais caro.  Afinal consegui, entraram mais cinco pessoas.

♥  O roteiro: Seriam três semanas.  Ficaria uns dias na Cidade do Cabo.  De lá diretamente para Windhoek, onde começava a aventura cruzando uma parte do Deserto do Kalahari, que abrange vários países.  Mas eu ficaria apenas na Namíbia fazendo um roteiro chamado “Great Namibia Journey”.  Ao final, precisava retornar a Johanesburgo apenas para dormir e no dia seguinte bem cedo pegar o avião para o Brasil.

 

A viagem começou antes do dia da partida.  Lembrando das roupinhas que Marilza e eu levamos para Laos e Camboja, pedi à agência daqui que perguntasse o que poderia levar para dar por lá na Namíbia.  Recomendaram cadernos e lápis.  Fui a uma papelaria atacadista e comprei os pacotes.  Pesados.  Minha chefe na época soube da ideia e achou que só cabeça de ex-professor iria se satisfazer com isso.  Eram crianças, tinha que levar algo para se divertirem.  E queria participar.  De repente a coisa cresceu e tinha umas tantas pessoas já se envolvendo.  Eu e uma engenheira fomos dispensadas de trabalhar numa manhã para irmos às lojas de comércio popular comprar brinquedos.  Não podiam ser coisas nem muito grandes nem muito pesadas.  Achamos bichos de pelúcia, bolas fosforescentes de silicone e mais algumas coisas.  Arrumei tudo numa mochila antiga e meti na mala.  Sabia que no período de jipe através da Namíbia não poderia carregar muito peso na bagagem.  Por causa dos cadernos, não estava nada leve.  Quando chegasse lá ia ver como fazer.

Em Johanesburgo imaginava que alguém fosse me esperar para ajudar na conexão, ainda mais com a confusão que o aeroporto estava em virtude das obras para a Copa do Mundo de Futebol.  Procurei por algum papel com meu nome, rodei o saguão e nada.  Resolvi encarar os andaimes.  Meu embarque era no segundo piso, o elevador não estava instalado e a rampa estava bloqueada.  Vi que todos subiam com os carrinhos pela escada rolante, o que é bem complicado.  Consegui fazer o malabarismo e segui em frente.

Na chegada a Cape Town estava lá o meu transporte.

No hotel recebi um fax com meus vouchers locais, já que tinha havido desencontro em Johanesburgo.  E estavam todos errados, marcando passeios para dias que nem mais estaria na cidade.  Além de traslado de saída depois da hora de partida do avião.  Os recepcionistas foram gentilíssimos, se prontificando a tentar resolver tudo para mim e me oferecendo o escritório para que eu mandasse um e-mail para o Brasil.  Minutos depois chegou a resposta da agência brasileira de que eles entrariam em contato com a agência africana para acertar tudo.

Fui matar as saudades do Victoria and Albert Waterfront, o velho porto transformado em agradável área de lazer e gastronomia.  O Rio de Janeiro não tinha ainda conseguido destravar essas renovações, dava inveja deles.

A Cidade do Cabo bem que parece o Rio de Janeiro.  É a mistura de mar com montanha.

Depois de uma noite de vento muito forte, tinha a visita da Montanha da Mesa, e a subida é de teleférico.  Não tinha certeza se chegaria lá em cima.

AS2 No alto da M da Mesa

No alto da Montanha da Mesa.

Talvez por causa da ventania, os macacos e os dassies (parece um porquinho-da-Índia mas na escala zoológica é mais próximo dos elefantes) não apareceram.  A vista sempre linda.  O restante do passeio foi fraquinho.

AS1 M da Mesa

No antigo Jardim da Companhia, tendo ao fundo a Montanha da Mesa.

Usei a tarde para visitar o Forte Orange e outros locais acessíveis a pé.  Cape Town é bem diferente de Johanesburgo, sem problemas com estrangeiros e muita gente nas ruas.  O transporte público não dá para encarar, é confuso.

Repeti programas conhecidos como o Cabo da Boa Esperança, e quase perdi o passeio por causa da confusão dos vouchers.  Reconheci o logotipo no uniforme e fui falar com o guia.  Meu nome não constava na lista do dia mas foi fácil resolver, havia lugar no transporte.  O contato feito entre agências não tinha valido de nada.

AS5 Ilha Duiker Hout BAy

Em Hout Bay, visitando de barco a colônia de focas da ilha Duiker.

Seria uma pena ter perdido pois incluía a colônia de focas de Hout Bay, o Mercado de artesanato e Jardim Botânico de Kirstenbosch.

AS4 Kirstenbosch

Jardim Botânico de Kirstenbosch.

A etapa final era no Parque Nacional com o Cabo da Boa Esperança, que ainda leva a fama de ser o ponto mais ao sul do continente africano e dividir o oceano Atlântico do Índico.  Geograficamente eles explicam que não é mas vale a tradição e a vista que se tem.

AS6 Cabo Boa Esp

Subindo ao farol do Cabo da Boa Esperança.

Outro passeio de belas paisagens foi às vinícolas de Stellenbosch.  E para completar, um almoço debaixo das árvores.  Mas não me sentia bem, e a indisposição iria se repetir até eu desconfiar da sua causa.

AS3 Thelema

Vinícola em Stelenbosch com suas roseiras para indicar eventuais pragas no cultivo.

No sábado sem programação fui parar num centro comercial novo nos arredores da cidade.  Havia ônibus que passavam nos hotéis.  Cercado de lagos, moderno, bonito, bom de comer por lá.  Comprei um prendedor de cabelo com contas de madeira, difícil de explicar como ele prende, é bem original e talvez o mais bonito que eu já tenha tido.  Quando voltei à noite, os arredores fervilhavam com o festival de Jazz no Centro de Convenções de Cape Town, bem em frente ao meu hotel.

Meu voo para Windhoek, capital da Namíbia, saía cedo.  Ainda estava escuro quando meu transporte me levou até a entrada do aeroporto, uma abertura no tapume.  O motorista apenas parou e indicou com o dedo a direção que eu deveria seguir.  Fui caminhando pelo canteiro de obras, arrastando malas.    Lá dentro estava tudo quase pronto, sem problemas.

Quando marquei essa viagem, a maioria das pessoas não sabia sequer localizar o país.  Então é melhor começar explicando o que aprendi lendo e conversando sobre a Namíbia.

N1 postal

Meu postal para localizar a Namíbia.

É um país jovem, no sudoeste africano, ao sul de Angola.  Sua costa era conhecida desde os navegadores portugueses do final do século XV, mas a neblina densa, ventos fortes, litoral rochoso e correntezas desencorajavam a aproximação.  Somente no século XVIII chegaram holandeses, alemães e ingleses.  Em 1884 o governo do chanceler alemão Otto von Bismarck declarou o Sudoeste Africano como um Protetorado.  No início do século XX houve disputa de terras com os nativos Nama e Herero, que acabaram expulsos para o deserto sofrendo grandes perdas de população.

Após a Primeira Guerra Mundial, o Império Britânico começou a invadir terras do Protetorado.  Com a Alemanha novamente derrotada numa Segunda Guerra, a invasão das terras se concretizou, foi considerada uma província da África do Sul britânica e foi imposto o mesmo regime de apartheid.  Nesta ocasião a Liga das Nações (o início da ONU) tentou intervir determinando uma gestão internacional dos territórios.

Apena em 1966 inicia-se um movimento clandestino de libertação, o SWAPO (South West African People’s Organization).  No mesmo ano a ONU emite uma resolução definindo a existência do novo país, cujo nome reporta à vegetação nativa local.  Uma corte internacional de justiça ratifica a decisão em 1971.

Porém em 1973 os sul-africanos intensificam a ocupação da região.  Em 1988 a situação quase se complicou quando tropas cubanas sediadas em Angola invadiram a área.  Logo depois se retiraram.  Até hoje há uma parte da população que responsabiliza Angola por ter atrasado sua primeira eleição e consolidação da independência.

A primeira eleição aconteceu em 1989, levando o SWAPO ao governo.  A Constituição é de 1990.  O regime político é pluripartidário, o legislativo é bicameral e a data nacional é o dia 21 de março.  A moeda é o dólar da Namíbia, onde estão representados a fauna e os povos nativos, tendo seu valor equivalente ao rand sul-africano.  Seu primeiro presidente foi Sam Nujoma, reeleito por outros dois períodos até 2004 quando se afastou da política.  É considerado um dos grandes homens da formação da nova pátria e seu nome aparece em ruas por todo o país.

O norte é área de altos índices de AIDS e em 2006 superou um surto de poliomielite.  O turismo é fonte importante de renda.

O marido de uma conhecida minha é oficial de marinha e um dia comentou que o Brasil, por ser um país que nunca demonstrou ser colonialista nem desenvolver qualquer política de ocupação de terras vizinhas, foi escolhido para formar seus os primeiros oficiais de marinha.  Tempos depois vi isto num documentário na televisão.

Minha primeira impressão da Namíbia foi a qualidade da estrada até a capital Windhoek (pronuncia-se algo como vindúc). Nenhuma autopista de velocidade máxima, mas bem asfaltada, muito sinalizada e numa paisagem bonita.  Fiquei hospedada no Hotel Villa Verdi.

Quando marquei a viagem, pedi que a agência providenciasse uma visita da cidade.  Não teria muitos atrativos, o que não diminui a surpresa.  Uma cidade simples mas bem moderna.

N2 centro Windhoek

No centro de Windhoek.

Eles se orgulham de sua única linha ferroviária entre as duas maiores cidades ser considerada entre as que oferecem melhores panoramas, começando pela estação que é uma delicadeza.

N3 ferroviária

A elegante estação da ferrovia que liga Windhoek a Swakopmund.

O guia me levou a um local de reunião dos moradores da comunidade, o mercado de Katutura, uma espécie de galpão aberto onde já se preparava um tipo de churrasco para quem fosse se chegando no final do dia de trabalho.  Gente do maior sorriso e simplicidade.  As casas foram construídas durante o período de ocupação sul-africano para excluir do centro a população negra.  Com a nova situação, ao invés de demolirem tudo, usaram o investimento para melhorar as condições de urbanização e serviços públicos.  É um bairro simples, mas bem legal.

N4 Katutura

Katutura.

Quando voltei ao hotel tinha um recado de que o guia iria se encontrar comigo um pouco mais tarde.  E lá estava eu esperando.  Não tive a menor simpatia por Festus, um homem bem alto da etnia Herero (só fui saber sua etnia depois) cheio de ordens e instruções.  Foi logo dizendo que a bagagem deveria ser mínima e que já estava sabendo do depósito de minha mala na agência durante os dias rodando o país que seria devolvida a mim no aeroporto no dia da saída.  Lembrei da mochila pesada, não podia abandonar e resolvi enfrentar.  Contei o que levava, como estava arrumado e o peso que tinha.  Sem um sorriso, ele apenas declarou que eu levasse a mochila até o jipe no dia seguinte e que a partir dali ela seria responsabilidade dele, já que eu trazia presentes para sua gente e ele me ajudaria no que eu precisasse.  Torcia para minha má impressão estar errada.

Jantei ali mesmo no hotel, carne de elande, que é o gado que eles criam.

No dia seguinte, tudo pronto.  Enquanto esperava, fui avisada que haveria atraso na partida.  Quando enfim nos reunimos, soube que uma das passageiras ficara sem bagagem.  Precisaram fazer a ocorrência no aeroporto e por isso houve o atraso.  Enfim, éramos os seis viajantes percorrendo a Namíbia durante onze dias por estradas e em aviões.  Três americanos, um casal inglês em lua-de-mel e eu.  Nosso transporte seria um jipe Land Rover Defender com geladeira a bordo.  Tudo mantido por um poderoso motor a diesel.

N5 da capital para o sudoeste

Saindo da capital para o sudoeste do país.

Neste primeiro dia não haveria almoço, não havia pontos de apoio no caminho.  Cada um recebeu sua caixa com comida e descobriu um cantinho para comer.  De não sei onde apareceram uns meninos, a quem demos tudo aquilo que não queríamos.  A alegria deles só dava mais tristeza.

Depois disso, o melhor foi ver alguns “conjuntos residenciais” de tecelões, um pássaro que vive e constrói em grupos.

N7 Ninho comunitário

Ninho comunitário.

A temporada de chuvas atrasou naquele ano e paramos para ver a floração das plantas.

N6 Margarida do deserto

Margarida do deserto entre plantas de folhas duras para resistir ao período seco.

No fim da tarde chegamos ao acampamento de Kulala, na região do Sossusvlei.  E eu adoro esse tipo de alojamento chamado de acampamento fixo.  Ali está o encontro de todo o conforto com as coisas mais simples.  Boa comida, gente risonha.  Tudo procurando ser o mais autossustentável possível.  Água de poços profundos porque não há chuvas nem lagos.  Energia elétrica captada por painéis solares.  Ar limpo, noite com quantas estrelas se conseguir contar.

O despertar foi muito cedo.  O grande detalhe é chegar às majestosas dunas de Sossusvlei ainda escuro e acompanhar suas mudanças conforme a luz cresce.

E num rápido trajeto de jipe, cheguei em frente a um cartão postal.  A duna principal era simplesmente estupenda.

N9 Sossusvlei

Estava diante de uma imagem emblemática da Namíbia: a duna enorme, avermelhada, sinuosa em Sossusvlei.

Confessando minha preguiça e pouca aptidão para caminhar sobre areia, subi apenas uma duna.  Fiquei por ali, olhando as sombras e as cores enquanto meus companheiros iam se distanciando.  Ao fim de um certo tempo, deitei na areia e contemplei o mundo a partir dali.  O barulho era da areia soprada pelo vento e insetos voando, era um mundo tranquilo.  Trouxe um pouquinho daquela areia, mas não há sol que lhe devolva a cor local.

N8 Sossusvlei

Momento inesquecível para desfrutar.

Naquela mesma tarde, saímos para explorar a área de Kulala.  Mas as dunas não tinham mais a mesma cor.

O esquema lembrava bastante o de Botswana.  Acordar cedo para aproveitar o movimento da fauna pela manhã e a luz do sol.  No meio da manhã, um lanchinho.  Voltar ao acampamento para almoço, descansando para fugir do calor do sol a pino.  Sucos e frutas antes do passeio da tarde, onde sempre acontece uma parada para brindar ao fim de mais um dia.  Conversa com aperitivos e jantar.  Havia um pouco mais de liberdade para circular na área do acampamento, já que a fauna não apresentava riscos.

Saímos de Kulala rumando para pontos mais ao norte.  Nossos dias seriam de alternância entre acampamentos e cidades.  E de Kulala seguimos por estrada asfaltada até Walvis Bay.

O guia Festus já não parecia tão antipático.

Fizemos uma parada numa vila chamada Solitaire.  Ali consegui um cartão telefônico (esqueci de comprar na capital e telefonia móvel não seria suficiente).

N10 Solitaire

Fazendo pose para telefonar na cidadezinha.

Uma chamada ótima, sem ruídos nem interferências.  Guardei o cartão como lembrança.

Num certo ponto do caminho, nada mais que uma lombada da estrada, o guia avisou que o clima ia mudar.  E de repente havia vento e a temperatura era bem mais baixa, um mistério.  Na cidade, almoçamos num restaurante à beira mar, apreciando a rapaziada praticando “kite surf”.  Vento não faltava.

O pernoite foi em Swakopmund, palavra vinda do alemão que significa a boca ou foz do Swakop, o rio local.  Ficamos no Hotel Eberwein, antigo Villa Wille, um edifício antigo e charmoso, com jeito europeu bem simpático.  Fui passear pela cidade e acabei encontrando um mercado de artesanato onde comprei bijuterias de ossos de bois.

N11 Swak Av Sam Nujoma

A avenida Sam Nujoma em Swakopmund.  Presença clara da arquitetura alemã.

Tudo por ali era caminhando.  Já no fim da tarde, lojas fechando, consegui uma camiseta com fauna local, daquelas que a gente só usa em ocasiões especiais de tão querida que é.

N12 Swak comercio

Já na hora de fechar as lojas, no calçadão do comércio turístico.

Ainda descobri uma igreja luterana com todo o jeito da arquitetura alemã.  Entrei e fui muito bem recebida pela senhora que arrumava lá dentro, um lugar simples e claro.  Uma rápida conversa e um sorriso de despedida.

Fazia frio e tinha mesmo que voltar ao hotel para jantar, num restaurante bem perto de onde tinha o tal mercado.  Lembro que a comida estava especialmente gostosa.

O dia seria para nosso primeiro contato com a costa da Namíbia, vendo seus barcos de pesca e sua indústria local.  Passando pela mesma estrada da véspera, diminuímos a velocidade para ver o condomínio de casas de gente famosa, como Angelina Jolie.

Nosso barco saiu de Walvis Bay e vimos muitas aves marinhas e um peixe estranho, chamado localmente de molamola, um tipo de peixe lua.  A parte divertida ficou por conta da foca Sally, que se acostumou a acompanhar as lanchas em busca de algum peixe; ela tem seu jeitinho de se apoiar na traseira do barco, que segue bem lento.  Nunca foi adestrada, ela descobriu a oportunidade.  Mais sociável e folgado é o Robbie que entra nos barcos para pedir peixes.

N13 Robbie

O interesseiro Robbie.

Desembarcamos em local diferente da partida e a praia tinha areia formada por pedacinhos de granada, uma pedra semipreciosa de cor vermelho bem escuro, um grená.  Não tinha sol e imaginei que com multa luz o lugar ficaria uma pista de cores.  Não estava previsto parar ali mas eu pedi tanto que o guia local parou.

N14 Praia com granadas

Praia com areia formada por pedacinhos de granada.

Tivemos piquenique entre as dunas de Sandwich Harbour (mas que não tem nenhum porto), com direito a bandos de pelicanos sobrevoando o lugar.

N15 Pelicanos

Pelicanos perto de um ponto de água.

Voltamos de carro com tração passando por cima da trilha nas dunas.  O jantar foi no Hotel Hansa, o mais antigo da cidade.

Era época da Páscoa.  A mesa central do café da manhã representava dois mundos reunidos: num galho seco de acácia com todos os seus espinhos, várias cascas de ovos pintadas bem ao estilo da Páscoa alemã.   Pedi para tirar uma foto e uma das responsáveis pelo hotel fez questão de tirá-la para mim.

N16 Páscoa

Decoração de Páscoa: galho de acácia africana e seus espinhos grandões enfeitado com ovos pintados da tradição alemã.

Ainda vimos alguns lugares na cidade, como o alojamento para os que foram comandar a construção da ferrovia e alguns prédios de uso governamental.  Como estávamos no litoral, a neblina pela manhã era densa.

N17 prédios 1907

Ao fundo, edifícios construídos em 1907, agora usados pelo governo local.

Continuamos na direção nordeste do país e no trajeto avista-se a Brandberg Mountain, destacado pelo guia como sendo o segundo maior monólito na Terra.  Não vi nada de especial.

Acho que foi nesse dia que passei bem mal, não tenho certeza.  Era um mal estar já vinha desde os passeios na África do Sul.  Estava usando cloro em gotas na água que escovava os dentes e lavava o rosto, cuidado exagerado.  Aquilo acabou me complicando o aparelho digestivo e tive uma grave disenteria.  Não sei como desconfiei do cloro; parei de usar e não tive mais nada.  Muito tempo depois andaram recomendando por aqui que frutas e verduras fossem lavadas com água clorada e voltei a ter o mesmo problema.  Cloro não me faz bem, melhor é esquecer dele.

N27 Festus

O eficiente Festus (nada da antipatia inicial) e nosso jipe Defender.

Festus se mostrava bem diferente da minha primeira impressão ruim.  Competente, profundo conhecedor dos caminhos e gentes; era bem simpático.  Estava disposto a encontrar elefantes do deserto, bem raros e arredios.

Entrou por uma fazendola onde perguntou se ali tinham visto algum deles, e disseram que desde que tinham quebrado a cerca semanas antes, não tinham voltado.  Já de partida, eu lembrei da mochila e só falava “toys, toys, toys”.  Ele entendeu e deu meia volta. Mergulhei as mãos na mochila e entreguei dois bichos de pelúcia às duas crianças que viviam ali.  Eles encantados e a família agradecida por tão pouco fazer duas carinhas sorridentes.

N18 meninos

Brincando com os bichinhos de pelúcia na fazendola por onde às vezes circulam elefantes do deserto.

E chegamos a Damaraland Camp.  O nome me faz lembrar das zebras de Damara, aquelas que têm uma fina listra castanha no pelo branco entre duas listras negras.

Ali ficamos só uma noite.  Todo um projeto sustentável de energia elétrica e aquecimento de água nas cabanas.

N19 Damaraland camp

Damaraland camp e suas instalações sustentáveis.

Saímos cedo para o sítio arqueológico de Twyfelfontein.  No caminho, no meio de um ambiente rochoso, enfim apareceram os primeiros órix, o animal símbolo do país.

N20a

Órix ou gazela do deserto.

Nesta região, antigas comunidades de bosquímanos (bushmen) deixaram gravações de animais nas pedras.  Os traços são fáceis de serem reconhecidos.  Subindo pelas trilhas, escorreguei e fiz um bom estrago no joelho.  Fazia tempo que eu não levava um tombo em viagem.

N20 Twyfelfontein

Gravações dos antigos bosquímanos.

Ali foi uma fazenda de colonos da família Levin até 1964, quando foram retirados e o lugar ocupado por sul-africanos.  O propósito era colocar outras famílias, gente deles, durante a implantação do regime de apartheid.

Estávamos em terras de rios temporários, na época da seca.  A paisagem era dura, mas de uma beleza perfeita.

N21 eio seco de dolomita

No leito seco do rio cercado de estacas de dolomita.

Para continuar, a estrada não era nada além do que o leito seco do rio temporário de Huab.  O alojamento em Palmwag Rhino Camp era especialmente planejado para buscar os raros rinocerontes pretos.  A área é privada, uma enormidade com um milhão de acres, e é uma reserva da espécie que exige grande espaços territoriais.

Incrível como em todos estes lugares longe de tudo eles fazem umas comidas gostosas, variadas e suaves.  Não importa quem administra o campo, a cozinha para mim é deliciosa.

Na manhã seguinte saímos com guardas armados.  Com rinocerontes a coisa pode complicar.  Mas para mim, de joelhos estropiados e sempre desajeitada em terrenos difíceis, o problema foi descer uma encosta de pedras soltas que iam até o leito seco de um rio e subir pelo outro lado.  Eu quase entrei em pânico e só fui porque o guia me arrastou.  Eu não era a única, a moça da Califórnia também tinha dificuldades.

Quando indicaram onde estava a fêmea e seu filhote, eu não vi mais do que um ponto escuro lá bem lá longe.  Acreditei sem ter certeza de que eram rinocerontes, apesar de meu binóculo ser antigo mas muito bom.

N22 Tina e Tensie

No centro da foto, mamãe Tina deitada com seu filhote Tensie.  Foto bastante ampliada.

Para a volta eu e a americana fizemos um caminho mais suave, mais baixo e com inclinação menos acentuada, por onde o jipe podia nos pegar sem sofrermos muito.  Ou seja, não precisávamos ter descido por um caminho tão ruim e íngreme.

N23 Palmwag

Os buscadores de rinocerontes.  Impressionante a facilidade com que sobem e descem as encostas pedregosas.

O almoço foi ao ar livre, naquele terreno pedregoso, avermelhado, quase agressivo.  Só que ele é bonito, muito bonito.  E os guardas armados foram embora, caminhando saltitantes por aquelas rochas soltas com a facilidade dos anos de convivência.

De tarde fomos conhecer uma campo natural onde cresce a rara Welwitschia, a planta nacional do país. Só tem duas folhas, de crescimento contínuo e que vão desfiando.  Anualmente florescem, uma flor no centro da planta.

N24 Welwitschia

Uma welvitschia, a planta nacional.

E vimos chuva, rosada pela luz do sol de fim do dia.  Logo a nuvem se desfez e foi mais um belo pôr do sol com vinho e salgadinhos.

N25 Palmwag fim de dia

Pôr do sol depois da chuva.

O destino seguinte era Ongava, uma região de savana com considerável quantidade de água disponível, o que aumenta a densidade de flora e fauna.

N26 zebras da namibia

O macho do grupo de zebras à direita, atento ao seu redor.

No Ongava Tented Camp, em frente da varanda, fizeram uma pequena escavação para criar um bebedouro e a bicharada se acostumou a ir, sem medo, sem ninguém molestar.  E eles passavam como num filme, permitindo fotos de uma distância segura para todos.  Eu cada vez ficava mais encantada, se é que isso era possível.

N28 Ongava

Na varanda do acampamento, uma foto com os animais perto do tanque de água.

Fizemos um safári à tarde e como sempre foi bonito.  E já voltávamos para o acampamento quando o guia freou e desligou o motor.  Estava ali, bem ao lado da trilha, um belo macho de rinoceronte branco.   E ele nem se incomodou conosco.

N29 rino branco macho

Um raro rinoceronte branco (que não tem nada de branco!).

Na etapa seguinte íamos a um dos destinos mais importantes, o Parque Nacional de Etosha, que muita gente compara com o Parque Kruger.  Para mim são diferentes.

Em Etosha é comum usarem o manejo de animais através de manobras de água.  São tanques naturais ou às vezes artificiais, abastecidos regularmente com água e que por isso concentram animais.  Se há uma superpopulação ou algum motivo para moverem os grupos, passam a abastecer outros bebedouros e com isso os animais se deslocam.  O único problema é que animais cavadores volta e meia destroem trechos da canalização subterrânea.

N33 zebra gnu springbock

Onde tem água a fauna se reúne.  Aqui são zebras, gnus e gazelas.

A parte do parque que visitamos não tinha muitas árvores, era mais vegetação rasteira.  Eram centenas de metros de visão empoeirada de fauna tranquila.  Sempre buscando novidades, o guia acabou encontrando uma manada de elefantes, com sua matriarca, filhotes e suas mães.  Não dá para descrever como é emocionante.  É fácil distinguir a matriarca, ela se destaca e parece sempre atenta.  As outras fêmeas se ajudam com os filhotes, e estes sempre se divertem e brincam.  Ali havia água para se refrescarem.

N30 elefantes

Elefantes!!!!

De repente, momento de suspense.  Surge um macho, grandão, solitário como todos.  Se aproxima do grupo quase reverente com a grande chefe, passa tranquilo pelos filhotes, tenta localizar alguma fêmea no cio.  Não encontrou nada, bebeu um pouco de água e como chegou, saiu.  Cenas magníficas.

N31 17 elefantes e o macho

Ao fundo, vem se aproximando um macho adulto.

Etosha é bem plano nessa área perto de Ongava.  A vista alcança a bicharada até bem longe e os grupos de diferentes espécies se misturam.

N32 gnu az zebra impala cara preta

Impalas e zebras.

Na saída fiz questão de registrar minha presença ali junto do portão do parque.  Quem me conhece sabe que eu estava aos pulos de alegria.

O incômodo deste dia, e que não era pela primeira vez, coube ao americano.  Uma pessoa hiperativa e sem noção de estar sendo desagradável.  Enquanto todos nós nos mexíamos dentro do jipe com cuidado e silêncio, ele falava alto e nos atropelava pulando pelos bancos.  Chegou a pisar no rapaz inglês e machucar sua perna.  Empurrava para fora do campo de visão prejudicando aquele enquadramento que todos queriam mas só ele se permitia.  Até a câmera dele tinha uma espécie de sininho que tocava a cada vez que tirava uma foto.  Neste dia ele passava de um banco para outro, pulando o encosto sem um mínimo de educação.  As pessoas se entreolhavam e encaravam a mulher dele, que mantinha um sorriso entre a omissão e a patetice.

N34 Etosha

Num dos portões de Etosha.

Almoço e descanso no acampamento; depois o safári de tarde.  Já voltando depois do brinde ao fim do dia, ali estavam duas raridades cruzando uma estrada que devia ser só deles – uma rinoceronte branca e seu filhote.  Ficamos ali olhando o quanto quisemos, até eles mudarem o rumo, saírem da estrada e se embrenharem no bosque.  Não é uma reclamação, é uma constatação – para que precisei me equilibrar nas pedras?  E isso hoje me parece engraçado.

N35 mae e filho rino branco

Mamãe e filhote de rinoceronte branco cruzando nosso caminho.  Sua cor não é branca, é cinza escuro.  Já estava escurecendo.

E chegava o grande final do roteiro, a Costa do Esqueleto.  Esqueletos de barcos naufragados desde o tempo das navegações dos exploradores portugueses.  A costa ali é de uma braveza visível nas ondas que mudam de direção forçadas pela correnteza.

De Ongava para lá fomos de aviãozinho, daqueles que fazem voo visual, dando para nós a visão de um passarinho. Outro jipe nos esperava na pista e fomos alojados no Skeleton Coast Research Camp, onde apenas um casal de funcionários fazia todo o trabalho.  Confesso que me surpreendi, quase um susto.  Eram 6 tendas mais a tenda principal.  Água para banho era o marido que colocava um balde no reservatório do chuveiro.  Ele também era o cozinheiro, e logo descobrimos que era dos muito bons; a mulher cuidava da limpeza e arrumação.  Energia elétrica era fotovoltaica mas poucas placas, mais para a geladeira da cozinha mesmo.

N36 Sk Coast Research Camp

Skeleton Coast Research Camp, o mais rústico.

Saímos para o passeio da tarde e logo descobri que aquele não era o único acampamento.  Aquela instalação só era usada quando havia roteiros como o nosso, que eram muito poucos.  As pessoas que faziam o programa deslocando-se de avião entre os acampamentos, ficavam no outro conjunto, este com mais facilidades de uso.

O deserto por ali é a definição de inóspito.  Rochas e areia a perder de vista, sem que se perceba sinais de vida.  Só que de uma beleza arrasadora.  E fomos para as “Dunas que rugem”.  Mas acho que elas cantam.  E para elas cantarem, vá até uma determinada altura, sente e deixe-se escorregar.  E ouça a melodia.  O vento também as faz cantar.

O senhor americano não parava de fazer barulho em toda a viagem.  Sempre falando, perguntando (bobagens geralmente), batucando, cantarolando.  E resolveu fazer um relato da viagem no alto da duna.  Eu não aguentei e pedi a mulher dele que o fizesse parar um pouco por que eu queria ter o direito de ouvir o lugar.  Ela ficou muito sem graça, disse que ele era assim mesmo, que todos reclamavam; lamentei mas insisti que ela desse um jeito.  O casal inglês percebeu e veio dar uma força, eles também já tinham reclamado desde o dia dos elefantes.

Longe de tudo, ali era a terra do simples demais.  Era muito reconfortante também.  Quase impossível de explicar.

No dia seguinte iríamos até Puros visitar uma aldeia dos Himbas.  Festus levava a mochila.  Os brinquedos seriam para as crianças da comunidade e o material escolar ele iria me levar a uma escola na vila.

O caminho acompanhava em parte o rio Hoerusib, às vezes na superfície, outros trechos subterrâneo.  E onde havia água apareciam as girafas.

N37 girafas rio Hoerusib

Onde há umidade e brotam acácias, há girafas.

A aldeia é difícil de explicar.  No centro ficava o cercado das cabras, que naquela hora já tinham sido levadas para pastar pelos homens; eles eram responsáveis pelos rebanhos.

N38 Himbas

O cercado dos animais no centro da comunidade Himba.

Frequentar a escola é obrigatório já faz alguns anos.  Então só os pequenos estariam por ali.  As mulheres se penteiam fixando o cabelo com lama.  A matriarca só conhece seu idioma, porém as mais jovens, que já frequentaram escola, entendem um pouquinho de inglês.

N38 Himbas matriarca

A matriarca faz questão de ser fotografada na porta de seu refúgio.  Como quase todas as mulheres, seu cabelo está penteado com lama de argila.

Enquanto eu distribuía os brinquedos e mostrava como as bolas de silicone piscavam, pedi ao rapaz inglês que fotografasse a confusão.

Eu me vi cercada de crianças que se divertiam e eu me sentia feliz por trazer um pouco dessa diversão.  Os maiores logo aprenderam a esticar as bolotas de silicone enquanto os pequeninos mordiam os bonequinhos.  Dizer que foi bom é o melhor jeito de explicar o que passei ali; muita explicação vai estragar a magia das gargalhadas.  Os outros passageiros também aproveitaram.

N40 Himbas

Um pequenino e seu bichinho.  Os maiores já faziam batalha de bola de silicone.

Era outro dia de piquenique e banheiro na moitinha.  Lencinhos úmidos são ótimos nessas situações, servem para tudo.  Ficamos um tempo parados para o piquenique.

Festus avisou que ia me levar a uma escola e ninguém protestou.  Todos foram, mas ninguém desceu do jipe.  Saltamos com a mochila e fomos até a sala de aula.  Os alunos, pré-adolescentes, se arrumavam para terminar o dia de aulas.  Em seu idioma, falou com o professor e explicou o que eu trazia e de onde.  Ele recebeu com evidente surpresa e decidiu ali mesmo que iria usar aquilo como prêmios.  A turma logo se agitou.  Pedi para fotografar, o que foi prontamente atendido e ainda sugeriram que mostrasse o painel que tinham pintado.

N41 Escola

A emoção da visita à escola.  O professor tem nas mãos algumas das coisas que levei.  O painel da fauna ao fundo dá um toque colorido e bom.

Saí dali chorando, e ainda me emociono quando lembro daqueles minutos.  É das minhas fotos queridas de todo coração.

Na volta fizemos um caminho diferente mas ainda passando por trechos verdes graças ao Hoerusib.  A água corria rasa e rápida, entre rochedos.  Paisagens surpreendentes e inesperadas.

N42 Deserto com água

Vegetação num trecho subterrâneo do rio Hoerusib.

Passamos pelo acampamento para um rápido descanso e fomos para outras dunas apreciar o pôr do sol num raro dia sem neblina.

Tinha reservado alguns brinquedos para o filho do casal que cuidava de nós e fui entregar logo a eles.  Deixei também a mochila e tudo o mais que não precisaria voltar.

N44 Yvonne e Janaman

Com Yvonne e Janamam, os dois da etnia Damara que cuidaram tão bem de nós.

Mais um dia naquele paraíso ressecado, indo conhecer os “Castelos de Argila”.  Ali passava um rio há milênios, agora é subterrâneo.  Esse rio foi responsável pelos depósitos de sedimentos que agora são ponto de visita.  São lugares acima da explicação e devem ser delirantes para um geólogo.  Para leigos fica a beleza.

N43 Castelos de argila

Castelos de argila, um depósito de milhões de anos.

De tarde havia um programa que poderia ser chatíssimo: pescaria na praia.  Não foi.  Banho de mar nem pensar, era afogamento certo.  Pescar também não é minha praia (trocadilho à parte).  Fui caminhar, ouvir as ondas, procurar pegadas, ver conchas, deixar o fim da tarde chegar.

N45 Costa do Esqueleto

O perigoso litoral da Costa do Esqueleto.

E era nosso último pôr do sol do roteiro.  Tudo ali pode ser surpreendente e ter uma cor e um tom dramático.  Foi outro dos raros dias sem neblina no final da tarde, devemos ter uma tremenda sorte.  E veio com um presente desembrulhado para ser bem visto.

N46 Costa do Esqueleto por do sol

Pôr do sol sobre o oceano Atlântico.

O jantar foi especial, ao ar livre e à luz de velas, para ver mais estrelas ainda.  Estava acabando e já dava saudade.

A última manhã foi para dar suspense.  Partimos bem cedo para o norte, na direção da fronteira com Angola.  A estrada não passa de um caminho marcado na areia com pedras de tal maneira que os jipes não prejudicassem a formação das dunas.  Só aí me dei conta de que no Sossusvlei não há essa preocupação e a quantidade de pessoas por lá é muito maior que no Parque Nacional da Costa do Esqueleto.

N47 Estrada de areia

As trilhas permitidas na areia.

Era uma nova região protegida, dedicada aos líquens (combinação tipo simbiose de fungo e alga) que se espalhavam por quilômetros e proporcionavam condições de vida a uma fauna de pequenos seres.  A umidade vinda do mar durante a noite encharcava os líquens e daí acontecia todo o movimento das pequenas vidas em função deles.

N48 Campos de liquens

Os campos protegidos de liquens, onde existe uma rica fauna pequenina.

Não são coloridos, são rasteiros mas são pra lá de importantes.  Quem vai até lá não pode sair da trilha demarcada pelos pneus, para não esmigalhar ninguém.  É sempre pisotear o mesmo lugar.  Fomos bem avisados disso e podíamos descer do jipe mas não deveríamos andar por ali.  Quando fui tirar uma foto para o chão, me desequilibrei e dei um passo; levei uma chamada na hora e quase morri de vergonha.

No retorno pela costa para ver o farol e algumas carcaças de naufrágios, o jipe enguiçou.  Festus consertou, dirigiu um pouco mais, parou novamente.  Outra tentativa e enfim a conclusão que não dava mais.  Bateu o nervosismo geral, tínhamos que pegar bagagens e estar na pista de pouso para chegar a Windhoek e de lá seguir no voo para Johannesburg.  Por rádio, foi pedido outro transporte (ainda bem que o rádio funcionou!) e nosso almoço foi transformado em pacotes para comer no avião.  Chegamos meio em cima da hora, ainda deu tempo de me despedir do casal de cuidadores e sair dali com a emoção em nível bem alto.

O voo sobre aquele deserto ainda nos trazia novas imagens da vegetação junto dos rios de superfície ou subterrâneos.

N49 De volta a Windhoek

Vegetação surgindo nas margens do rio ainda subterrâneo.  No auge da estação das chuvas tem um bom volume de água.

Perto da capital essa umidade é usada para uma pequena agricultura.

N50 Agricultura

Um pouco de cultivos perto de Windhoek.

Chegamos a tempo.

No aeroporto recebi minha mala, joguei a maleta dentro dela pois agora havia espaço sem ter mais a mochila pesada.  Levava agora muitas lembranças, leves e coloridas, lugares ímpares que conheci de uma viagem emocionante.  Quando anunciaram quem comandava o voo, foi feito um aviso especial: era uma mulher, a primeira da empresa nesta posição.  Aplausos na cabine.

Na chegada a Johanesburgo tive que pedir ajuda a um guarda pois com as obras, o ponto de embarque para o hotel tinha mudado de lugar.  Jantei no hotel mesmo, cansada e feliz.  Só faltava acordar cedo na manhã seguinte, pegar o transporte do hotel e o avião de volta para casa.

Mas ainda tinha uma vista para apreciar.  Da janela do avião, a mesma paisagem que me encantara anos antes e me levara até ali.  E pensar com muito carinho na África que conheço e me encanta, com todas as suas dificuldades e problemas.  Mas também descobrindo seus caminhos.

N51 litoral

Sobre o grande Kalahari junto da costa do Atlântico.

Não foi uma viagem cheia de bichos.  Nada de leões, hipopótamos, leopardos ou búfalos.  Elefantes, algumas girafas, zebras e rinocerontes sim.  Tudo numa paisagem quase agressiva de tão seca, mas recheada de pontos verdes que vinham com as águas invisíveis.  Uma gente boa.  Folhas longas que não param de crescer.  Estrelas à vontade.  Vilas simples e muito organizadas.  Dias de pôr do sol antológico.  E muita sensibilidade.

N52 mopane folha em borboletal

Folhas de mopane, arbusto frequente no país e cujas folhas lembram borboletas.  É lindo vê-las voando com o vento.

2006 (setembro) – Santas capixabas

Um nome como esse é meio estranho, mas o nome do pacotinho turístico rodoviário pelas serras e algumas praias no Espírito Santo, durante o feriadão da Independência, falava de santas.  Em 2006 eu ainda não estava aposentada, então ainda valia a pena aproveitar feriados.

∫  O roteiro: Hospedagem em Vila Velha e três dias de visitas programadas, incluindo a fábrica de chocolates.

O caminho era por Campos dos Goitacazes, apenas para o almoço.  Depois foi só ir direto a Vila Velha para hospedagem de frente para o mar.

O primeiro dia de visitas foi para dar uma olhada em três cidades com nome de santas – Santa Leopoldina, Santa Teresa e Santa Maria de Jetibá.  São pequenas, visitadas num só dia.  Em todas elas é fácil perceber os traços da influência dos colonos alemães e italianos.  O jeito de falar das pessoas é sua identidade.

O tempo maior foi passado em Santa Teresa, onde fica o Horto Mello Leitão, onde Augusto Ruschi trabalhou na pesquisa de fauna, principalmente com beija-flores.  É o seu legado científico que está lá.  O lugar parece já ter tido melhores dias.

Santa Teresa

Com um jovem amiguinho na praça de Santa Teresa.

Era o dia do feriado e fomos avisados que a quase totalidade dos restaurantes não estariam abertos para jantar, inclusive no hotel.  Eu e mais alguns passageiros decidimos ficar num shopping para jantar.  Gente por todos os corredores, praça de alimentação lotada, todos do grupo se separaram.  Depois de conseguir comer algo, uma rodada para ver as lojas e pensar no retorno ao hotel.  Não havia ônibus circulando, o aviso estava escrito no terminal.

A fila para táxi era um tumulto só.  Eram pouquíssimos os que estavam trabalhando.  Quem cuidava de tentar organizar a confusão já estava se desesperando, por bons motivos.  Compartilhei um taxi que ia para um hotel próximo ao meu.

No terceiro dia, a tradicional visita ao Convento da Penha, com a vista para Vila Velha e para a capital, Vitória.  E uma parada estratégica na fábrica de chocolates, irresistível.

Na parte da tarde, uma visita a Guarapari.  Lembro que há muitos anos essa cidade era famosa por suas praias de areias pretas, que chamavam monazíticas.  Vi uma cidade praiana cheia de prédios enormes acompanhando toda a orla.  A praia só tem sol pela manhã, os edifícios formaram uma parede que faz sombra sobre a areia na parte da tarde.  Com o uso intenso das praias, também não sobrou nada da areia preta.  O melhor foi poder jantar frutos do mar com calma e sem preocupação com o transporte da volta.

Começando a volta, houve visita a uma comunidade onde se fabricam as panelas de barro usadas para cozinhar a tradicional moqueca capixaba.  Muita gente comprou as peças, que são grandes e pesadas.  Eu me limito a olhar e pensar o tamanho do arrependimento que quase todos terão daqui uns tempos.  Parece despeito de quem não sabe cozinhar, mas não é.

Nem deu tempo de rever Vitória, que eu conheci bastante durante um tempo que meu pai trabalhou lá.  Foi uma passagem sem nem fazer nenhuma parada ou visita.

Restava visitar uma quarta cidade que também teve nome de santa, Isabel, mas mudou para Domingos Martins.

De todas as cidades que se expandiram com colonos, essa foi a que mais gostei.  Foi opinião geral.  Os edifícios antigos estão bem conservados, a cidade bem ordenada, mostrando sua Igreja Luterana que desafiou a lei antiga que proibia templos não católicos de terem torre.

O cuidado com as pracinhas nestas cidades pequeninas sempre me encantou.  O diminutivo é por carinho, pois muitas são bem grandes, para um lazer espaçoso e um bom convívio social.

Domingos Martins

A pracinha de Domingos Martins e a igreja luterana através do jato de água.

Depois foi só o caminho da volta.  Carregando pães, doces cristalizados e biscoitos tradicionais dos antigos colonos.  Feriado terminado e razoavelmente bem aproveitado.

De praia, ficou apenas a vista da janela do quarto.  Não havia tempo livre entre as visitas e as nuvens sempre carregadas ou uma chuva fininha não permitiram.

2006 (abril e maio) – Novas paisagens no Oriente

O esquema em casa quando eu viajasse tinha dado certo.  Hora de ir mais longe.  Fazia tempo que eu morria de “inveja boa” de um apresentador de televisão que fizera uma série de viagens pelo mundo e acabou indo parar no Camboja.  Também o filme de Lara Croft aumentou o desejo.  Para completar, explorar outras partes da Indochina.  Munique era desejo antigo e essa escolha de escala que fizemos ficou além de ótima.  Texto longo, viagem rica, muitas fotos.

♥ O roteiro: Era a oportunidade de ver melhor a Indochina.  Junto com Marilza, optamos por juntar Laos e Vietnam, além de uma passagem pela Tailândia por questões de logística de voos.   No roteiro aéreo escolhemos uma escala em Munique, que não conhecíamos.  Para não ficar uma viagem longa e cara demais, abrimos mão de Chiang Mai, na Tailândia.

Chegando na Alemanha e ainda no aeroporto de Munique, compramos nosso passe de trem e metrô para aquele dia e mais um passe de transporte público para dois dias e que podia ser usado por até cinco pessoas, que foi útil e proporcionalmente bem barato.

Para descer as escadas até a plataforma de embarque no trem com a bagagem demos logo o primeiro vexame.  Marilza equilibrou mal a mala e eu que tinha descido primeiro só via as duas quicando pelos degraus.  Ninguém machucado.

Na chegada ao centro, deixei Marilza lá dentro com as malas e saí para me orientar.  Tomei um susto com o tempo péssimo, nuvens negras pesadas.  O hotel era bem perto mas decidimos pegar um táxi pois já começava a chover.  Foi bom porque a rodinha da minha mala quebrou.  Carregaria a mala capenga por toda a viagem.

Já no quarto, chuva já mais fraca, olhei para o relógio e propus irmos logo para o centro, a Marienplatz, para assistirmos o Glockenspiel.  Dava tempo de vermos o desfile das figuras daquele famoso relógio na Neues Rathaus.  Chegamos bem a tempo da marcha dos bonecos e olhamos tudo encantadas. Durante muitos anos sonhei estar naquela praça.  E foi bom termos ido porque passeamos tanto em Munique e arredores que em nenhum dos outros dias teríamos chegado nos dois horários da mostra dos bonecos do carrilhão.

Rodamos um pouco por ali, fomos até Frauenkirche e jantamos cedo.  Claro que havia salsichões e cerveja.  Em seguida, o sono nos chamou.

6 M Marienplatz

Em Marienplatz, a Altes Rathaus, do outro lado da mais famosa Neues Rathaus e seu relógio.

Tínhamos programado dois passeios pelos arredores de Munique e começamos o dia resolvendo essas compras no escritório de turismo.  O primeiro seria até o Castelo de Neuschwanstein.  O segundo, até Rothenburg.

Chovia fino e frio em Munique mas mesmo assim resolvemos ir aos jardins de Nymphenburg, sem fazermos visita interna do palácio, ainda fechado.  Na rua próxima pegamos um ônibus que dizia Olympiastadium e circulava pela parte residencial de Munique.  Perdemos tempo mas foi bom, vimos o que não foi previsto.  Desembarcamos no final da linha, no Parque Olímpico de 1972.  Andamos um pouco, sempre com frio e chuva, brincamos com um cachorrão e descemos para a estação do metrô.

Duas ou três paradas até chegarmos ao centro, muito rápido, mas sem termos a visão que tivemos do ônibus.

Chuva e vento atrapalham os andarilhos.  Então optamos por visitas internas.

Entramos no museu Residenz, onde pela primeira vez vi coroas de antigos reis com pedras preciosas não lapidadas.  Havia uma exposição temporária sobre o Reino da Bavária, cuja capital era Munique.  Se algum dia soube, tinha esquecido: a Bavária era um reino e o Sacro Império Romano Germânico era outro.  A Bavária era aliada da França, o Germânico tinha outros aliados geográficos e políticos bem diferentes.  No final do século XIX, por problemas na sucessão do trono, o Reino da Baviera foi anexado ao Império Germânico.

No final da visita vimos que a chuva tinha parado e fomos olhar também o Odeonplatz e o Hofgarten.

1 M Residenzstrasse

Odeonplatz e Residenzstrasse.

O jantar foi na maior e mais conhecida cervejaria de Munique, a Hofbräuhaus.  Diz a tradição que foi construída em 1589 para uma festa de casamento real.  É interessante, quase obrigatório ir lá conhecer.  Muito cheia, música alemã alta demais para o meu gosto.  Comum na Alemanha, o sistema de mesas coletivas funciona bem para a quantidade de gente.  A atenção que os garçons dão ao cliente é nenhuma. Como em quase todas as casas deste tipo, paga-se logo quando se recebe o pedido, mas não precisa ser mal-educado.  Talvez o mau humor e a grosseria façam parte do folclore da casa.  Vale conhecer, mas não sei se repetiria.

Dia de sair pelos arredores.  Nosso primeiro passeio começou no palacete Linderhof, construído pelo então Príncipe Ludwig para se hospedar enquanto acompanhava a construção do seu palácio de sonhos, Neuschwanstein.  Depois paramos em Oberammergau, uma cidade famosa pela encenação da Paixão de Cristo, porém o que nós gostamos mesmo foi das paredes externas dos prédios pintados com cenas de histórias infantis.

Enfim chegamos à vila de Schwangau, perto de Füssen, onde logo se destaca Hohenschwangau, a enormidade de castelo do século XII restaurado por Maximiliano II em 1832.  Só víamos o termômetro do ônibus indicar que cada vez a temperatura baixava mais e ali já era negativa.  O corpo pedia uma comida quente antes de subir a Neuschwanstein.

Para entender melhor a visita, o melhor é conhecer a história deste castelo de fantasia.  Herdeiro do trono de seu pai Maximiliano II, o Príncipe Ludwig desde cedo demonstrava comportamento arredio.  Nunca se casou e em 1864 tornou-se o rei Ludwig II.  Entre 1869 e 1886 esteve envolvido com a construção do seu palácio, onde as salas representam contos de fadas e cenários de óperas.  Poucos serviçais o serviam e era proibido visitar o local.  Um de seus poucos amigos foi o compositor Richard Wagner e mesmo ele ficava hospedado em Hohenschwangau.  Em 1886 morreu afogado, juntamente com seu médico, o que nunca foi bem esclarecido pois era excelente nadador e o lago muito raso; três dias antes tinha sido destronado. Seu irmão foi considerado inapto ao trono e a Bavária acabou sendo absorvida pelo Império Germânico, como já contava a exposição em Residenz.  Poucos dias depois da morte de Ludwig II, Neuschwanstein foi aberto à visitação.

Para subir ao castelo, o melhor é ir de charrete, mas com frio e chuva foi mais conveniente que subíssemos no ônibus especial e ficamos na fila esperando a entrada com hora marcada.  Não houve tempo de caminhar até Marienbrücke.  A visita é com hora marcada e há um áudio guia no idioma escolhido.

Enquanto esperávamos começou a nevar. Fazia muito tempo que não via aqueles flocos pequenos e frios caindo. E foi ali que conheci uma espanhola xará de minha mãe, que tem um nome bem pouco comum.  O nome delas é América.

Se Ludwig comandou a construção de um castelo baseado em cenários e lendas, o conto de fadas agora é para os visitantes.  O castelo é delirante, em todos os sentidos que a palavra possa ter.  Não há como escolher esta ou aquela sala mais bonita, mais impressionante.  As vistas para as montanhas completam o quadro.

2 M Neuschwanstein

Na fila para entrar em Neuschwanstein enquanto a neve cai.

É daqueles lugares que se precisa estar lá e sentir, deixar voar o pensamento, ter um pouco da mente confusa e poética de Ludwig.  Só não pode perder tempo demais porque os áudio-guias comandam o prosseguimento da caminhada e os fiscais são rigorosos no horário.  E nem pensar em fotografar seu interior; apenas na cozinha é permitido.

Quando voltamos ao centro de Füssen eu estava tão excitada com a neve e o castelo encantado que fui procurar um telefone.  Queria ligar para casa e contar as maravilhas do dia.

Para a noite, tínhamos ingressos para ver “Cats” num teatro perto do hotel, achando que jantaríamos na saída.  Duas tolas.  O restaurante do teatro estava lotado e não havia mais nada aberto.  Com muita cara de piedade conseguimos dois hambúrgueres horrorosos e dois refrigerantes quentes no bar anexo ao hotel, onde várias caras esquisitas olhavam aquelas duas senhoras comendo apressadas.  Eu ainda estava aprendendo que deveria ter sempre biscoitos e chocolates na bagagem, ou comprar no destino logo que chegasse.

No dia seguinte o passeio foi a Harburg e Rothenburg ob der Tauber.  Enfim um dia de tempo melhor.  Trafegando por uma das famosas “autobahn”, sem limite de velocidade para carros de passeio, só víamos passar flechas coloridas, na realidade Audis e Porches, enquanto o ônibus seguia lentamente lá pelos seus 90 quilômetros por hora.

A visita de Harburg é interessante, um castelo com passadiços de madeira, o que para mim era novidade.

Rothenburg é daquelas cidades que parecem casinhas de bonecas.  O guia, esperto, arrastava os turistas para um almoço num determinado restaurante e nós fugimos dele.  Fizemos um lanche rápido com gostosuras locais para aproveitar o máximo de tempo naquele lugar lindinho.

Ainda há restos de sua muralha medieval e pertenceu ao Sacro Império Romano Germânico até 1802, quando foi anexada ao Reino da Baviera.

3 M Rthenburg ob der Tauber

A Marktplatz de Rothenburg.  A prefeitura é o prédio à esquerda.

É uma cidade colorida, naquele momento aquecida por um mormaço gostoso.  A Prefeitura parece um brinquedo.  Descobrimos ruelas e jardins, pontes e torres.

Numa pracinha a fonte de pedra ainda tinha a decoração de “Österbaum”, galhos secos decorados com cascas de ovos pintadas para a Páscoa.

5 M Rödengasse

Rödengasse com seu chafariz decorado com cascas de ovos pintadas.

Perder a direção dos caminhos tem a vantagem de levar a lugares interessantes como o parque Burggarten, onde existiu um castelo de 1142 até 1356, destruído por um terremoto.  Só restou uma torre.

4 M Rödengasse

Detalhe das guirlandas de cascas de ovos pintadas.

Mas para voltar destes pontos perdidos, o mapa é essencial.  A leitora de mapas sempre sou eu, Marilza não consegue. Sentei num murinho para me localizar e Marilza tentou me ajudar lendo a placa e dizendo que estávamos na esquina da rua eimbanstrabe.  Depois me desculpei, mas tive que rir.  Einbahnstraße é rua de mão única, ela não tinha que saber alemão.  Ficou como uma de nossas bobagens viageiras.

Na volta descobrimos que passaríamos em frente da Allianz Arena, estádio dos times de futebol de Munique.  Perguntamos ao guia se seria possível fazer uma parada e nos deixar lá.  Ele botou todas as dificuldades, queria até saber porque mulheres se interessariam por futebol.  Fez também o comercial da empresa, dizendo que eles vendiam visitas guiadas.  Tive que deixar bem claro que iríamos embora no dia seguinte.  Foi quando o motorista interferiu e disse que nos deixaria lá sem problemas e que para voltar havia a estação junto do estádio.

Agradecemos muito com uma gorjeta e ficamos por lá.  Não era mais hora de visitas, mas pelo menos tivemos uma ideia de como ele é grande, bonito e diferente.  Acessos amplos e caminhos bem sinalizados.  Voltamos de trem até perto do hotel, dispostas a colocar uma roupa para jantar em Marienplatz.  Chegamos lá umas 8 horas da noite e estava tudo fechado.  Outra noite de hambúrguer ruim não era possível. Lembrei que tínhamos passado por uma cervejaria na Neuhauserstraße e voltamos correndo com medo que fechasse.  Era a Augustiner, que se tornou a nossa cervejaria preferida em Munique, música alegre mas menos barulhenta, comida e cerveja bem gostosas, um serviço melhor.

Na última manhã fazia sol e tínhamos planejado dar uma olhada no Änglicher Garten, e lá fomos nós de metrô.  Vimos a Torre Chinesa e o Biergarten.  É um dos melhores espaços urbanos de lazer que já vi, para todas as idades e atividades.

Ainda demos uma passada em Marienplatz, ocupada pelas comemorações do Dia do Trabalho, para despedidas.  O discurso começava com “Colleguen und Colleguinen”, companheiros e companheiras existem lá também.

7 M copa 2006

Divulgação da Copa do Mundo.  Ao fundo as torres de Frauenkirche.

A Copa do Mundo de Futebol seria na Alemanha dali a poucos meses e estivemos numa das praças onde havia instalação com projeções e divulgação do evento.  Tudo dentro de uma bola.

Não dava para fazer mais nada.  Era voltar ao hotel e caminhar com as malas até a estação de trens, embarcar para o aeroporto e seguir viagem para Bangkok, nossa entrada na Indochina.

Resumindo, tínhamos aproveitado Munique e locais próximos da melhor maneira que conseguimos.  E gostamos muito.

Retornamos ao aeroporto também de trem, conveniente, prático e muito mais barato que táxi.  Desta vez fomos levando as malas pela rua ensolarada.

Chegamos bem cedo e fomos para o portão de embarque para Frankfurt.  Encontramos um senhor brasileiro que estava bem nervoso com o voo de volta ao Brasil e de repente percebemos que não havia mais ninguém para embarcar.  Tinham mudado o portão e, distraídas, não percebemos o aviso.  Com a nossa grande antecedência, o cartão constava o número errado.  Saímos às pressas para o novo local, o que deixou o tal senhor ainda mais nervoso.

Chegando na Tailândia, o primeiro passo no desembarque é passar pela inspeção sanitária e mostrar o certificado de vacinação contra febre amarela.  Perdemos um bom tempo nisso porque ficamos na fila da imigração, não pudemos passar, caminhamos um longo corredor até o posto, e voltamos tudo outra vez já com o papel de autorização.  Fomos levadas para um hotel muito bem localizado, bem no agito de uma grande avenida e com muitas galerias e lojas por perto.  Logo na chegada o guia do receptivo nos entregou os bilhetes aéreos para os trajetos dentro da Indochina; vi que tinha um meio rasurado, mas não liguei para o fato.

Sempre se chega cansado, mas não se dispensa uma tarde livre.  Quase em frente ao hotel ficava um templo hindu. Fomos até lá, rodeamos um pouco ali por perto, entramos numa das galerias.  Ficamos por ali mesmo, olhamos umas lembrancinhas para comprar na volta e achamos uma comidinha boa que iríamos repetir.

Ainda pegamos um tuc-tuc que nos deixou em Patpong, algo como um mercado que mistura restaurantes, comércio de artesanato e casas de prostituição que tem até menu nas portas para escolher o serviço e ver os preços.  Famílias locais e estrangeiras, incluindo crianças, passeiam por ali, comem, cantam, fazem compras e apreciam nas portas os tais cardápios com as sugestões de atividades e comportamentos com as moças. E nem adianta ficar encabulado porque ninguém vai ligar e nem mesmo perceber sua cara de espanto. Fiquei constrangida de fotografar.

Dia de visitas e olhos preparados para rever aqueles templos cheios de dourado e cores, figuras fantásticas e budas preciosos.  Não era o mesmo impacto da primeira vez, mas a sensação de alegria de rever aquilo tudo era muito especial, muito boa.  Lembramos muito da guia Maria, que se divertia com nosso encanto.

T 1 Templos Palácio Real

Figuras dos Guardiões sempre atentos nos Templos do Palácio Real em Bangkok.

Pedimos ao guia que ao invés de nos levar para o hotel, nos deixasse onde pudéssemos ter um táxi para irmos até o Museu Casa de Jim Thompson.  Como era perto, ele nos deixou lá.  A história dele é bem estranha.  Ele foi agente secreto norte-americano e, quando parou de trabalhar, foi para a Tailândia trabalhar com comércio de seda de alta qualidade.  Tornou-se colecionador de arte regional.  Desapareceu numa viagem à Malásia.  Sem filhos, seus bens passaram a diversos familiares que decidiram continuar com a indústria da seda.  Também mantiveram a casa como museu, até porque sua coleção de arte asiática era invejável.  É um lugar interessante, de preços altos para uma seda de primeira qualidade.

Para a noite, jantar com música num barco através do rio Chao Phraya para ver os templos iluminados.  Valeu a pena.  A comida é surpreendentemente boa e sem pimentas, a vista é das mais bonitas, apesar da iluminação não ser tão intensa quanto esperávamos.

Eu tinha enchido a paciência porque queria ir a Pattaya, mais ou menos perto de Bangkok.  Marilza reclamava sempre, mas como ela não gosta de praia e o lugar é de praias, acabou concordando.  A viagem foi mais demorada do que eu pensei.  A praia muito mais mixuruca do que se pode imaginar. Almoço medíocre. Depois descobrimos que a fama da cidade é por causa de intenso turismo sexual.

Na manhã seguinte já saímos para o Laos, voando com destino a Luang Prabang.

A empresa aérea, cuja propaganda dizia ser a melhor opção para deslocar-se entre as melhores cidades da Indochina, era campeã de atrasos. E nem adiantava sofrer, todos os trajetos seriam com ela.  Ainda no embarque descobrimos que teríamos mais uma companheira brasileira, que se apresentou quando nos ouviu conversando.

Logo na chegada percebemos a diferença, tudo mudou.  Ruas sem trânsito, hotel entre jardins, gente em ritmo mais lento.  Nosso guia, que iria ser um dos melhores que já tive, se chamava Olan; falava espanhol fluentemente, aprendido em Cuba onde estudou para ser técnico agrícola.  Ser guia era um complemento quando o governo chamava.  Pessoa delicada como todos ali seriam, incrivelmente gentis e sempre solícitos. Gente que apaixona pela atenção, até num pequeno detalhe de dar a cada uma de nós algumas folhas xerocopiadas explicando as diversas posições de corpo e mãos que aparecem nas representações de Buda.  Simples, mas esclarecedor e útil, várias vezes consultado durante a viagem e reproduzido para conhecidos que viajavam para essas bandas.

Logo depois de hospedadas, começamos a visita pelos templos, alguns no alto de morros com vista para a cidade e o vale.  Por último foi Vat Siphouthabath para ver o pôr do sol entre ramos de flamboyant.  Na descida, feirinha de artesanato.  Sou meio difícil de me encantar em feirinhas, mas essa me pegou.  Tudo muito caprichado, elegante, cores delicadas em seda e algodão.  Compramos algumas coisas, que seriam mais se fosse fim de viagem.

L 1 Vat Phousi e Mekong

Pôr do sol visto de Vat Phousi.  Lá em baixo o rio Mekong.  Ainda bem que eles abreviam os nomes dos templos.

Um de seus comentários mais interessantes do guia foi que, conforme as tradições do povo, os templos devem ser limpos e pintados, sempre renovados.  Só que isso não é aceito pelos órgãos internacionais de patrimônio, criando alguns problemas.

A República Democrática Popular do Laos se chamava Lane Xang e seus dois últimos reis foram no início do século XX.  Luang Prabang foi capital deste reino entre 1356 e 1560, quando foram formados seus ricos templos.  Toda a região da Indochina foi ocupada pelos franceses desde 1713, e os reis não mais representavam o poder central.  Eles saíram em 1958 e logo depois veio a Guerra da Indochina, com forte e dominante presença dos norte-americanos.  A guerra foi longa e cruel com os nativos.  A independência do Laos só chegou em 1975, num regime socialista.

Nosso jantar seria no hotel.  Começava com aquele caldinho ralo coberto de ervas verdes picadinhas que Marilza tem horror; eu bebia o meu e o dela.  Durante toda a viagem acabei me habituando a terminar a refeição tomando chá quente num lugar onde o calor é de rachar.  Mas é agradável.  Salvo o inconveniente de precisar acordar para ir ao banheiro.  Marilza toda noite comentava que não sabia como cabia tanto de líquido dentro de mim: o dos dois caldinhos, água e um bule de chá.

Em algum lugar eu tinha lido que não se deve dar dinheiro às pessoas na Indochina.  Então perguntamos através da agência o que poderíamos levar para dar a algumas crianças.  Levamos roupinhas de malha de diversos tamanhos.  E pusemos algumas na bolsa no dia em que iríamos subir de barco um trecho do rio Mekong.

O dia começou visitando o Vat Xieng Tong, considerado entre os mais bonitos e clássicos do país, erguido em 1560.  Seu telhado é o principal elemento, quase tocando o chão.  Dentro dele há muitas esculturas de Buda, quase todas em bronze, aguardando restauração.

L 2 Vat Xieng Thong

Sem abreviatura, esse templo se chama Vat Xiengthongratsavoraviahnh.  Copiei da placa e escrevi nas minhas fotos.

Várias capelas têm representação do Ramayana, que eles afirmam ter sido apropriado pelos indianos, mas que na realidade relata as tradições mais antigas da região.  Cada um conta a sua versão sobre a quem pertence o poema épico.

Dali pegamos nossas caixinhas de piquenique, com os indefectíveis ovo cozido, coxa de frango e uma fruta.  Hora de subir o Mekong.

Por causa das guerras que aconteceram nos anos de 1960 até 80 na Indochina, cresci ouvindo falar mal do rio Mekong, um caminho para ataques e extermínios.  Nada lembrava as atrocidades naquele sobe e desce de barcos compridos, de gente se esforçando para viver.  Ainda havia praias nas margens, que iriam desaparecer em poucos dias por causa do início das chuvas de Monção.  A vida é rústica.  Havia gado, criançada brincando, alguma plantação.

Desembarcamos e subimos as escadarias até as grutas de Pak-Ou, onde descansam centenas de esculturas de Buda, algumas bem rústicas.  Não há notícia de como nem quando essa tradição de levar imagens começou.

L 3 Pak Ou

Entre imagens de Buda.

A uma parte da gruta só é permitido o acesso a noivos.  O lugar é pura tranquilidade.

Na margem oposta à gruta, onde fica a minúscula Ban Xang Hai, fomos a um restaurante extremamente simples, apenas para usarmos suas mesas e comprar alguma bebida para o nosso almoço.  A comida descia forçada, fria; a bebida era sem gelo mas naquele calor vale tudo.  Foi quando apareceu uma figurinha de uns quatro anos, linda, correndo e gritando.  Era a filha dos donos, uma boneca.

Tínhamos pedido ao guia que descobrisse no povoado quem estaria precisando de roupinhas de bebê, e ele voltava com a resposta.  Havia nascido um menino fazia poucos dias.  Ele iria ganhar algumas de nossas lembranças. Perguntamos a ele se haveria problema de darmos uma outra roupa à menina que nos encantava.  Ele explicou que aquele casal era dos mais abastados do povoado, donos do seu próprio negócio, mas não haveria nenhum inconveniente. Ele chamou o pai, explicou o que era e que estávamos achando a sua filhota uma fofura.  Entregamos a roupa e seu sorriso não deixava dúvidas.  Entrou e mostrou para a mulher e a pequena, que começou a rir e pular, não sossegando enquanto não lhe puseram a roupa nova.  Foi levada quase arrastada até nós para agradecer, fazendo a reverência e dizendo o tradicional “Sawasdee” na sua vozinha miúda.  E saiu correndo para mostrar a novidade.

Depois dali fomos até a casa humilde onde estava o mais jovem habitante do lugar.  Fomos recebidas por todas as comadres, que admiravam macacões e camisas.  Era emoção de todos os lados, não cabiam fotos, só sorrisos. Confesso que nesse dia chorei da alegria e simplicidade daquela gente.

Na descida, encontramos a nossa pequena e pedimos aos pais para tirar fotos com ela.  Foi complicado porque a pequena queria continuar correndo, mas acabou ficando um minuto quieta para nossas recordações.  Esquecemos de perguntar o nome dela.

L 4 Menina

Nossa pequena laociana e seu sorriso com a roupa nova.

Ainda fomos a uma fábrica de vinho de arroz, algumas garrafas com bichos dentro, tipo cobrinhas.  Bem estranho mas se respeita.  A bebida é bem forte, mas só provamos das que não tinham nada dentro.

Naquela noite fomos no transporte do hotel até o centro da cidade para telefonar para o Brasil.  A cidade fervia e se ouvia uma mistura total de idiomas.  Conseguimos falar com facilidade e voltamos ao nosso hotel afastado para ainda jantar.  E tomar muito líquido.

Nossa companheira de viagem não foi ao parque das cachoeiras de Khuang Xi e suas piscinas naturais.  Ali havia um cercado para ursos do himalaia, aproveitando que vivem na região.  Ha bananas e outras frutas para serem compradas e oferecidas a eles.

L 5 Ursos

Pela quantidade de filhotes e o tamanho do espaço reservado, os ursos do Himalaia pareciam estar bem.

Tínhamos um tempo para tomar banho, o que foi muito bom.  Levamos maiô e fizemos sucesso pois as pessoas mergulham de roupa e tudo, enquanto as crianças vão mesmo é peladinhas.

Aquele mergulho em águas quase geladas deixaram uma sensação de alívio da temperatura por todo o dia.

Ainda passamos por alguns povoados, mas nada que despertasse tanto interesse.  E Olan se divertia distribuindo alguns bonés para caminhantes das estradas.

L 6 Khuang Xi

Água gelada em Khuang Xi.  Pessoal local entra de roupa e tudo.

De volta ao centro da velha capital, fizemos ainda algumas visitas a templos, como o Vat Mai, o Templo Novo, de 1769.  Ali se vê bem a estrutura dos telhados.

L 8 Vat Mai

Vat Mai, composto de Casa dos Monges, Casa do Tambor, Biblioteca, Estupa e Santuário.  É a organização de todos os templos budistas.

Na vila de Ban Phanom fomos ver a fabricação de papel artesanal, onde é comum incluir flores na massa de madeira. Comprei uma lanterna de bambu com flores incrustradas no papel.  Ficou pendurada no meu quarto por alguns anos mas acabou se desmanchando.

Comprei também um pedaço para ser recortado e que durante um bom tempo usava para fazer cartões para presentes.  Guardei um pedaço.

L 7 Papel Sa

Papel Sa

Fizemos ainda algumas visitas a vilarejos da etnia Khmu e terminamos no Museu Nacional, que ocupa o último palácio dos reis de Lane Xang, construído pelos franceses no início do século XX.   Não lembro do que vi lá dentro.  Lembro, sim, que na saída tinha se formado uma feirinha de frutas e verduras.  Pedi ao guia que me comprasse uma mistura de frutas locais para eu experimentar. Lavei e já fui comendo no caminho até o hotel. O efeito no estômago não foi dos melhores mas eram todas muito diferentes, gostosas e apetitosas.

Tempo de deixar Luang Prabang, querendo ficar mais.

Era uma segunda-feira e a vida na cidade mostrava seu lado de trabalho e escola. E deve ser a vida de professor que me faz ficar parada olhando a garotada ruidosa. No fundo, adolescentes são iguais no mundo todo, barulhentos, loucos por uma novidade, adorando se sentir observados e chamando a atenção de alguém.

Passamos no mercado, tiramos umas últimas fotos, o guia presenteou a cada uma com uma bolsinha artesanal de tecido.  Devemos a ele os dias bem aproveitados, o aprendizado, a gentileza, a parceria com gente de tão longe.

E seguimos de avião para a capital Vientiane.  Quem nos recebeu foi outro laosiano falando espanhol aprendido em Cuba quando foi estudar Agronomia. Fomos levadas para o hotel, onde almoçamos e saímos para as visitas, tudo um pouco atrasado porque o voo atrasou.

Pode-se escrever Vat ou Wat, e significa templo.  Começamos pelo museu no Vat Sisaket, uma obra de delicadeza em madeira, de 1818.

Ali existe uma coleção de imagens de Buda, mais de 7000 delas. Ali pudemos ver as diferentes representações dele, como já nos falara o guia de Luang Prabang.  E realmente só as figuras chinesas são gorduchas e sorridentes. São diversos detalhes, até o lado para o qual se enrolam os cachos do cabelo.

L 9 Vat Sisaket

Budas em estilo tailandês: magros, cintura marcada, peito feminino.  O difícil é conseguir perceber que os cachos do cabelo se enrolam sempre no sentido horário.

Vimos logo que Vientiane não era grande, era o sossego em forma de capital.  Tivemos sorte com mais este guia, que conseguiu transformar quase nada em algo muito interessante. As histórias faziam a diferença.  Como por exemplo, Ho Phra Keo, o antigo santuário real de onde eles afirmam que o Buda de Esmeralda foi roubado pelos tailandeses e posto no Wat Phraw Kaew.  Nomes semelhantes eles têm e a fronteira iríamos ver logo depois.

L 9 Vat Ho Phra Keo

Ho Phra Keo.  Sem maiores detalhes sobre o roubo do Buda de Esmeralda.

Prosseguimos para Anousavari, também chamado Porta da Vitória ou Patousay, o monumento de 1958 que homenageia os mortos na guerra de independência contra a França em meados do século XX.  De longe parece um arco do triunfo, mas sua forma é de cubo vazado e tem estilo dos velhos templos da Indochina.

L 11 Patousay

Patousay, o Portão da Vitória.

Serve como mirante e quase perdemos a oportunidade de subir ao topo para ver a paisagem.  Tudo é tão lento que a visitação termina às 16 horas.

L 12 Av Lane Xang

Do alto de Patousay, a avenida Lane Xang e o trânsito na sonolenta capital.

O guia ainda nos levou para ver o lazer local, quando as pessoas se reúnem na margem do rio Mekong vendo a Tailândia do outro lado.  É a tal fronteira por onde teria passado a imagem do Buda?  Afinal, desde longos séculos nem sempre as coisas estão calmas entre as duas populações.  O cheiro de peixe frito, pescado ali mesmo, começou a me enjoar, como é comum acontecer comigo.  Mas a turma estava animada, música alta e muita conversa.

Por falta de opção, comemos algo no hotel.

Não havia nada interessante para fazer na capital durante toda a manhã livre.  Só Marilza e eu topamos a proposta do guia de irmos até o Parque de Budha, que é exatamente o que o nome diz.  Criado pelo Venerável Xiengkuane, tailandês rico que morava ali e saiu do país em 1974 por causa do regime comunista, o espaço dedicado a esculturas hindus e budistas nunca foi concluído.  Ali fica bem clara a transformação de Sidarta Gautama, que nasceu hindu, em Senhor Budha.  Considerando as limitações do país, o parque está bom, limpo e cuidado.

L 13 Parque de Buda

Parque de Buda.

Depois do almoço ainda restava a visita principal na capital.  Seguimos para a estupa de That Luang, com visual mais imponente, toda revestida em ouro.  A grande estupa sagrada, construída em 1566 pelo rei Sethtathirat, fica sobre duas outras estupas mais antigas e que, segundo a tradição, guardam uma relíquia de Buda.  Talvez seja cabelo, mas pode ser um pedaço de osso.

L 14 Estupa That Luang

That Luang, que na época não podia ser fotografada de perto.

Ao redor da grande estupa, trinta outras menores, também em ouro.  O conjunto é o símbolo nacional do Laos

Ainda passamos por Vat Simeung, o preferido das mulheres grávidas.

L 15 Vat Simeung

Imagem recorrente no Budismo em Vat Simeung.  Buda meditando sob a figueira sagrada, sentado no trono formado pela Naja de Nove Cabeças que o protege.

Ali nos despedíamos de um país que nos passou tranquilidade e relaxamento.

E seguimos enfim para o aeroporto, onde embarcaríamos para Hanói, já no Vietnam.  O guia nos deixou na porta, sem ter acesso ao interior.  E foi aí que a coisa encrencou para mim.

O bilhete de passagem era manuscrito, um daqueles que tínhamos recebido em Bangkok.  E estava rasurado.  Não aceitaram.  Meio sem saber o que fazer, meu nome constava na lista para embarque mas não aceitavam de jeito nenhum. Já me organizando para pagar uma nova passagem, encontrei um outro guia da mesma agência que a nossa.  Quase implorando, pedi que ele fizesse o contato e explicasse o caso.  Nosso avião já tinha pousado. Veio a resposta que eu aguardasse pois estavam me mandando um novo bilhete com os mesmos dados. Em nenhum outro país do mundo se conseguiria resolver tudo a tempo, o trânsito não ajudaria e nem o tamanho da cidade. Eis que surge de volta nosso guia agitando o bilhete na mão, me entrega e eu entro correndo para fazer check in e despachar bagagem. Foi pena ter que devolver o bilhete rasurado, era o correto, mas dava vontade de ficar com ele para mostrar a besteira e poder desabafar a preocupação e ansiedade em cima da agência tailandesa.

Chegamos ao Vietnam desembarcando já de noite em Hanói.  Não dava para perceber como era a cidade.  No jantar, conhecemos nossa nova companheira, uma argentina que se mostraria uma pessoa estranha.

E o dia começou com as visitas programadas e uma constatação: atravessar as ruas não é para corações fracos.  Não há sinais de trânsito. As ruas são de mão dupla.  Em qualquer cruzamento é permitido entrar à direita, cruzar à esquerda ou seguir em frente.  Guarda de trânsito é objeto decorativo; apitar e direcionar veículos é quase uma ação teatral.  Ônibus, caminhões, carros e centenas de motos andam juntos.  Há também bicicletas e triciclos no mesmo espaço.  Nas calçadas, totens com fotos de acidentados e o aviso de prestar atenção e dirigir com cautela.

Para o estrangeiro aquilo é um rolo, uma confusão completa onde todos se entendem.  Não adianta ter pressa nem sair costurando os veículos à frente.  Acidentes há muitos, porém as mortes são raras devido à pouca velocidade. Impressiona.  Eu só pensava no marido de uma amiga; ele trabalha na companhia de trânsito do Rio de Janeiro.  Acho que ele teria uma síncope ou coisa pior.

Começamos pela visita ao túmulo de Ho Chi Minh.  Lembrou muito a visita ao túmulo de Lenin na antiga União Soviética.  Cheio de normas de segurança, câmaras fotográficas estritamente proibidas, não é permitido parar para olhar melhor, um ar condicionado fortíssimo, proibido falar no interior e uma figura deitada parecendo de cera.  E principalmente a mesma posição das mãos que Lenin.  Já na descida comecei a falar e fui advertida por um guarda.  No choque térmico, eu que já suo muito, tive um verdadeiro jato de suor; Marilza olhou para as minhas calças e soltou mais uma de suas frases célebres: “parece que está toda mijada”. Devido à segurança ao redor, tivemos que engolir o ataque de riso.  Eu tinha conseguido molhar até os joelhos.

Depois dali passeamos pelo parque, fomos até a velha casa de Ho Chi Minh, conectada a um “bunker”, vimos o Palácio dos Governadores durante boa parte do domínio frances.

Templos não são dedicados somente a Buda; alguns são dedicados a pessoas santificadas e protetoras.  Fomos conhecer o templo da Literatura, dedicado desde 1070 a Confúcio, o protetor dos conhecimentos.  Ali havia concerto de música local, com instrumentos típicos. Bom para relaxar e comprar um CD para ouvir na hora de relembrar a viagem.

E para fechar, nosso equilíbrio emocional seria posto à prova num passeio de triciclo pelo centro da cidade.  Um para cada pessoa, não dava nem para apertar a mão do companheiro numa hora de sufoco.  Calçadas tomadas por motos, fiação embaralhada, toldos e todo tipo de artigos em exposição e à venda.

V 1 Hanoi triciclo

Hanói vista de um triciclo.

Qualquer veículo, moto, triciclo ou bicicleta, é conduzido com apenas uma das mãos; a outra segura um telefone celular se for homem ou uma sombrinha se for mulher.  Muito bom de ver a vida real.  Coração testado, seguimos para o almoço, quando fomos avisadas que iríamos trocar de guia.

Até que foi um bom city tour.  Hanói (ou Hà Nôi, como eles escrevem e que significa cidade entre rios) não é bonita, mas é marcante por ser bem diferente.

Começava aí um caso mal contado da passageira argentina.  Ela dizia que queria trocar seu único dinheiro por “dong” do Vietnam.  Não tinha dólares nem euros.  Apenas um dinheiro da Malásia que o filho lhe dera quando estiveram juntos em Kuala Lumpur.  A guia conseguiu um lugar mas ela disse que não servia porque teria que pagar uma taxa de serviço.  Todas dissemos que qualquer operação de câmbio cobra taxas, mas ela foi irredutível.

Contar o caso aos pedaços não vai fazer sentido.  Neste almoço em Hanói ela começou a ficar chorosa pois não tinha dinheiro nem para pagar um refrigerante.  Marilza e a outra brasileira logo pagaram para ela este e mais alguns outros.  Eu, coração duro, sugeri usar cartão de crédito para fazer um pequeno saque, ao que ela respondeu que não podia porque não tinha a senha e só podia usá-lo em estabelecimentos com máquina manual e mediante assinatura.  Em 2006?  Achei bem estranho. Sugeriram que ela telefonasse para o marido, contasse o problema e pedisse a senha, ao que foi explicado que o marido não lhe permitia fazer compras.  Nos hotéis sempre havia garrafas de água disponíveis gratuitamente, e carregávamos as que não usávamos, além das garrafas que eram oferecidas durante os passeios e trajetos.  Ela não carregava nenhuma mas continuava pedindo que pagassem suas bebidas, que ela reembolsaria depois.  Um dia sugeri que ela pagasse com o cartão uma conta nossa e nós lhe daríamos o dinheiro correspondente, ao que ela respondeu que isso poderia lhe dar problemas.  Nossa guia vietnamita começou a achar estranho, e olhava com cara de interrogação para nós.  Pediu até que pagássemos suvenires.  Nos dias sem refeição incluída ela dizia que comia o que conseguia pegar no café da manhã.  Marilza reclamava de mim, que eu não tinha piedade.  Assim fomos por todo o Vietnam até o Camboja, onde ela conseguiu uma loja para comprar um anel de ouro e rubis da Tanzânia e veio orgulhosa nos mostrar.  E nessa hora não havia marido que proibisse as compras.  Nunca nem tentou devolver o dinheiro que tinha sido emprestado.  Marilza, penalizada com a penúria da elegante senhora, nunca me convenceu de que a figura não era trambiqueira.  Algum tempo depois descobri que os dólares da Malásia que ela tinha eram moeda fora de circulação; a moeda agora era o ringgit.

Voltando ao passeio, a bagagem grande foi deixada em Hanói e fomos por rodovia até Halong onde dormiríamos para, no dia seguinte bem cedo, sair de barco típico pela famosa baía, que eu estava eufórica por conhecer.  Pelo caminho passamos por Chien Thang e suas oficinas de cerâmica.

Pela estrada de mão dupla e sem acostamento, um trânsito de ultrapassagens meio loucas, e sempre com bicicletas e triciclos misturados aos carros e caminhões, seguimos durante as horas de viagem com a guia bem falante explicando coisas do país, suas guerras antigas e recentes.

Falou das casas estreitas e de muitos andares que eram bem características, e sua forma devido aos terrenos são precificados pela sua frente.  Na parte norte do país são mais caros ainda.  Então compram lotes estreitos e constroem prédios de muitos andares, ocupados em geral por uma mesma família e que mantém seu negócio no térreo.

A história que achei mais curiosa foi sobre seu idioma escrito. A região do Viet Nam (significando os Viet vivem no sul) foi dominada pelos chineses da dinastia Han entre 111 a.C. e 939 d.C..  Seu idioma local passou a ser escrito em ideogramas.  Chegando ao século XVII, frades franceses começaram a transliterar os sons para o alfabeto latino, da maneira como eles entendiam os fonemas.  Os governantes locais se interessaram por aquilo, uma forma de diferenciar da escrita do antigo dominador.  Deram a eles a tarefa de transformar a língua falada em palavras escritas nas letras ocidentais.  Daí resultou um idioma cujo som, semelhante ao mandarim, é compreendido pelos chineses mas a escrita só eles mesmos entendem.  Cheio de cedilhas e acentos como em francês.  Nas minhas fotos anotei que auto se escreve ô tô.  Pura fonética para uma coisa que surgiu bem depois do trabalho dos frades.

Os séculos XVII e XVIII foram marcados por disputas feudais entre o norte e o sul.  No século XIX foi o tempo da dominação francesa se espalhar através da Indochina.  E só terminou quando o Japão invadiu aquelas terras mesmo antes da Segunda Guerra Mundial.  Com o fim da guerra, veio o desejo da descolonização.  E começaram as Guerras da Indochina.  O país saiu delas dividido e em situações precárias. A reunificação veio em 1976.  No final do século XX já era forte na economia da região, com turismo intenso.

Chegamos a Halong à noite e da janela do quarto do hotel só se via uma luzinha ou outra de algum barco.

Na manhã seguinte, o passeio pela baía de Halong me decepcionou.  O dia estava bem nublado e talvez faltasse o sol e o brilho dele na água.  A baía é bonita, mas acho que ansiava demais.  Almoçamos a bordo, e era peixe.

V 2 Halong

Halong Bay.  Mesmo sendo cenário de filmes, decepcionou.

Em seguida voltamos a Hanói para visitar o lago Hon Kiem, venerado pelas suas velhas tartarugas.  E mais um teste para o coração, atravessar a rotatória em frente ao teatro onde iríamos.  Estávamos furiosas por causa da roupa suada e inapropriada para um teatro.  Mas logo na entrada percebemos que todos os turistas estavam nos mesmos trajes de bermuda e camiseta.

No teatro Trang Long fomos assistir à apresentação das marionetes de água.  Colorido, alegre e criativo.  É muito interessante, uma técnica só deles.

V 3 Marionetes Thãng Long

Apresentação ao final do teatro de marionetes de água.

Bonecos dançam, namoram e lutam num ritmo perfeito.  Tudo é feito por moças e rapazes dentro d’água movimentando as figuras com varas de bambu.  No fim eles fazem um número com a piscina acessa para que se possa entender a técnica e os truques.  Muito bom.

V 4 Transito Hanoi

Saindo de Hanói, em frente ao hotel, um raro sinal de trânsito e a mistura de veículos.

Saímos logo depois do café da manhã para o aeroporto com destino a Hue.  A tal empresa aérea atrasou mais de seis horas e os carrinhos que seriam embarcados para o almoço durante o voo foram trazidos para a sala de espera e cada um ganhou sua marmita ali mesmo.  Eu estava danada da vida pois perderíamos as visitas da tarde, que incluíam a Cidade Proibida da antiga capital, ao estilo chinês.  Com isso, acabei não fotografando aquela cena meio ridícula.  Mas fui fotografada enquanto cochilava, tentando esquecer a espera.

Chegamos a Hue na hora do jantar no hotel, comido meio às pressas para poder ainda ver alguns dos carros alegóricos do desfile comemorativo do aniversário de Buda.

V 5 Buda 2550 em 12 de maio

Em 12 de maio de 2006 Budha fazia 2550 anos.  Os carros alegóricos passavam muito rápido.

Só na volta é que percebemos como o salão do hotel Huong Giang era bonito.  Móveis de madeira esculpida e laqueada, com detalhes dourados.

V 6 hotel Huong Giang móveis

Cara cansada entre preciosos móveis laqueados.

A guia de Hue teve a maior boa vontade, além de estar acostumada com as adaptações por causa dos atrasos de voos.  Marcou a saída para mais cedo e conseguimos ver a Cidade Proibida, bem menor e sem as cores marcantes da irmã de Beijing.  A irmã mais simples tem sua beleza e seu charme, mostrando bem a influência do vizinho sempre mais forte.

V 8 Cidadela Imperial Nguyen

Dentro da Cidadela Imperial de Hue.

Hue foi capital local da dinastia Nguyen entre 1802 e 1945. O Pagode Thien Mu tem oito faces como uma flor de lótus. Foi erguido por um destes governantes em honra dos 80 anos de sua avó.  Um dos elementos mais significativos é uma tartaruga de pedra significando essa longevidade e a persistência.

V 7 Thien Mui

A longeva Tartaruga em Thien Mu.

O passeio de barco pelo rio Perfume, onde se fabricavam essências, é meio sem graça.

Apesar do atraso na chegada, talvez Hue tenha sido o mais interessante, o mais rico de imagens, no Vietnam.

De Hue seguimos de carro passando por Danang.  E me vieram à cabeça lembranças de noticiários quando eu era quase criança, durante a guerra do Vietnam, que sempre mencionavam esse nome, onde havia uma grande base militar norte-americana.

No caminho a tradicional parada de compras, desta vez numa fábrica de esculturas de mármore das montanhas locais e outras pedras.  Até bijuterias eles fazem com incrustações de pedras e aí não resisti.  A pulseira pesa muito porém vale pela originalidade.

Seguimos para Hoi An, uma cidade na costa do mar do Sul da China.  Outra parada de compras, as tradicionais lojas que fazem roupas de seda sob medida em uma noite.  Escolhi o tecido, o modelo e paguei.  Marilza encomendou algumas para dar de presente, pois os preços eram convidativos.

Nosso hotel ficava de frente para a praia.  Muito calor, eu logo me assanhei para dar um mergulho numa praia nunca antes mergulhada.  Famílias inteiras, muitas crianças, uma praia de águas quase calmas e de temperatura agradável.  Ficamos um pouco e fomos nos arrumar para o jantar.  Deixamos toda a roupa secando na varanda do quarto.  No meio da noite acordei com uma ventania das boas.  Num pulo acordei Marilza para tirarmos as roupas do varal improvisado.  Não perdemos nada, por sorte o vento jogou tudo para dentro.

V 9 Mar do sul da China

Carioca na praia nem que seja no Mar do Sul da China.

Na manhã seguinte, perguntamos à guia que vento estranho era aquele.  Disse que costuma ser chamado de “rabo de tufão” e atinge áreas próximas à passagem do tufão principal.  E logo depois chegavam nossas blusas de seda, impecáveis.

Fomos visitar My Son (tem que dizer missom, nunca maissom, que soaria americanizado), que eles consideram berço da cultura Chan.  Confesso que não me encantei, mesmo sendo apreciadora de sítios arqueológicos.  Os vietnamitas respeitam e reverenciam bastante o local.

V 10 My Son

Ruínas do centro cerimonial do Santuário de My Son, na cidade imperial Cham Pa, entre os séculos III e XIII.

Em seguida foi o almoço e tempo para caminhar em Hoi An, que foi bem mais interessante.  E como professor não nega, fiquei um tempo vendo as meninas do colégio em visita ao templo, lindinhas e curiosas das nossas caras estrangeiras.

Voltamos a Danang e embarcamos no voo para Saigon, ou melhor Cidade de Ho Chi Minh, a mais europeia das cidades vietnamitas e que era muito menos caótica que Hanói.  O voo, como sempre, atrasou e chegamos junto com uma chuva que obrigou a ficar um tempo sobrevoando a cidade.  Só desembarcamos quando já anoitecia.

V 11 Templo do Senhor sec 17

Brincando com as meninas no Templo do Senhor, em Hoi An.

E foi aí que mergulhamos na história recente das tragédias do país.  Cu Chi guarda como lembrete os túneis onde a população se protegia e os soldados vietcongues se refugiavam para atacar.  A rede subterrânea permitia ataques de surpresa e desaparecimentos súbitos, uma questão complicada.  Foi uma guerra que eu me lembro das notícias e das fotos, em terrenos destruídos por agentes químicos desfolhantes que extinguiram espécies e torturavam pessoas.  Apenas eu e a argentina tivemos coragem, coluna e joelhos para percorrer um trecho de um desses túneis, claustrofóbicos e com pouca oxigenação.  Hoje são parte de um museu a céu aberto.  Terrível.

À tarde visitamos o centro da cidade e seus casarões e palácios afrancesados, resultado dos anos de dominação francesa. É bonita, mas não tem a mesma personalidade de Hanói.  Nem o mesmo caos no trânsito.

V 12 Centro de Saigon prox opera

Centro da Cidade de Ho Chi Minh, perto da Ópera.  Aprendi na escola o nome Siagon, difícil acostumar com o novo nome.

Fomos a uma fábrica de laqueados, onde comprei enfeites para casa.  E de repente caiu aquela chuva tropical de fim de tarde quando íamos para o mercado tradicional.  Inundou tudo, desciam rios de água e detritos conhecidos nossos.  Depois que a chuva amenizou, voltamos ao hotel.

V 13 Inundou Saigon

E assim acabou a visita perto do mercado.

Para a noite marcamos lugares no ônibus do hotel que leva os hóspedes a alguns lugares da cidade.  Avisamos que não iríamos sair do ônibus, apenas um passeio para ver as luzes. O motorista foi muito gentil, tentando explicar o máximo que podia no seu inglês cheio de sotaque.  Nem havia mais sinais do alagamento da tarde.

No dia seguinte fomos as quatro para o aeroporto e a guia Cúc nos presenteou com um pacote de macarrão de arroz artesanal.  Trouxe para casa e era muito delicado e saboroso.

Saímos num voo para o Camboja, direto a Siem Reap.  Desta vez sem atrasos.  Visto de entrada concedido no próprio aeroporto, bem rápido.  Quem nos aguardava era Kha, um guia de espanhol fluente e foi logo explicando que aprendera o idioma em Cuba quando foi estudar Veterinária.

Fomos direto ao hotel com nome de flor para almoçar.  Não havia passeios ou visitas naquele horário de sol a pino e calor de um forno acesso.  O recomendado para todos os dias era chegar das visitas da manhã, aproveitar a piscina do hotel, depois almoçar, descansar um pouquinho e sair nas visitas da tarde.  Entregamos as fotos que nos mandaram levar para Kha providenciar o crachá personalizado para as visitas.

Os dias em Siem Reap podem ser definidos como experiência inesquecível.  É um lugar muito distante para nós, que vale pela beleza, imponência e pelo povo de rosto largo, coração grande e espírito enorme que vem fazendo de tudo para se recuperar de anos de fome e genocídio.  Nas caminhadas pelos templos, cercados de apsaras esculpidas na pedra, de vez em quando Kha parava para bebermos água e ele contava histórias do passado de sua gente.  Não iríamos à capital, onde os museus e memoriais destes tempos tenebrosos são marcantes, porém mesmo ali era impossível não se emocionar.

Kha explicou que iríamos visitar lugares do período áureo do Império Khmer, nos séculos XII e XIII, com grandes construções de lugares sagrados.  Cada governante escolhia a sua religião, alternando-se entre Budismo Mahayana e Hinduísmo, que muitas vezes se confundiam e compartilhavam o mesmo santuário.  Somente mais tarde chegou o Budismo Theravada.

Não começamos os passeios pelo mais importante.  O programa daquela primeira tarde constou de Prasat Kravan, Banteay Kdey e Mebon Oriental.

C 1 Prasat Kravan

Prasat Kravan, do século X, onde se destaca Vishnu, o deus hindu pacificador.

Muitos dos templos hinduístas seriam em forma de torres, remetendo ao mítico Monte Meru e seus cinco picos, o centro do universo.

C 2 Banteay Kdey

Banteay Kdey, do século X mas reformado no século XII pelo rei Javayarman VII, o grande construtor dos templos budistas.

No final, assistimos ao pôr do sol no templo-montanha de Pré Rup.  Sua forma pretendia imitar a montanha sagrada, conforme constava em ilustrações.

Jantamos cada dia num lugar diferente, sempre uma comida boa, com verduras mal cozidas, como eu gosto.  E bastante chá.  O mistério da bebida quente que refresca naquele calorão.

Manhã de visita à cidade de Angkor Thom, capital do Rei Javayarman VII, e seus monumentos e templos.

C 3 Angkor Thom

Porta Sul da cidade de Angkor Thom.

A porta monumental foi erguida após a retomada da cidade contra a dinastia Chan (os mesmos que no Vietnam são lembrados com honra em My Son).

Dentro dos limites da cidade, minha preferência recai sobre o Templo Bayon e suas torres de caras esculpidas.  Não afirmam se são faces de Budha ou até do rei.

C 4 Bayon

Bayon.

É em Bayon que estão relevos contando da luta contra os Chan.  São diferentes, mas lembram os painéis egípcios contando das batalhas de Ramsés em Kadesh.

C 5 Bayon lutas

Cenas de guerra em Bayon.

Kha dava um tempo de descanso à sombra sempre contando histórias.  Ele era criança nos tempos do regime Khmer Vermelho comandado pelo ensandecido Pol Pot.  Passara fome no campo e vira muita gente desaparecer.  Depois da queda do ditador foi para Cuba estudar.  Agora estava casado e tinha um filho, a quem queria dar uma vida melhor que a sua.  Como havia poucas pessoas que falavam idiomas estrangeiros e agora o turismo crescia muito, os guias estavam tão requisitados que ele achava que não conseguiria mais ser veterinário.  Mas achava a vida agora bem melhor.   Siem Reap é o lugar que tem o maior atrativo turístico e ali existe um grande investimento em hotelaria e serviços como parte de um programa de reabilitação do país.

Sem sair da velha capital, fomos a Suor Prat e Terraço dos Elefantes, uma espécie de avenida de desfiles, e ao Terraço do Rei Leproso, na realidade um crematório.

C 6 Terraço do rei leproso

Parte externa do Terraço do Rei Leproso.

E chegou a tarde da grande expectativa, a grande hora.  O mais famoso dos templos, aquele que está na bandeira do país, Angkor Wat.  Não tem explicação, nem foto nem narrativa; tem que estar lá.

C 7 Angkor vat

Angkor Wat, suas cinco torres como o Monte Meru e seu reflexo no “baray”, o reservatório de água.

É imenso, cheio de simbolismos, de marcas da tal alternância entre os governos budistas e hinduístas.

C 8 devatas Angkor vat

Apsaras são semideusas talhadas na pedra que parecem mesmo dançar.

É impossível conhece-lo todo, precisaria de vários dias.  Mas o que se pode ver é emoção na pedra.  E ainda há templos ativos, onde vão os devotos fazer suas preces.

É cercado de muralhas, formando um grande quadrado.  Mais antigo que a capital, Angkor Thom foi erguido pelo mesmo rei Javayarman VII e foi usado quando como seu palácio até a conclusão das instalações reais na cidade.

C 8 baray Angkor vat

Depósito de água dentro de Angkor Wat.  Parece foto em preto e branco.

Durante a noite devo ter sonhado com aquela visita que tanto desejei.

É tradicional ver o nascer do sol em Angkor Wat mas só nós duas topamos sair de madrugada. Achamos até que o local estaria com pouca gente e logo na chegada fomos surpreendidas pela multidão.  O sol vem por trás do templo, muda as cores.

C 9 Nascer do sol Angkor vat

Vendo o sol nascer em Angkor Wat.

Na volta para o hotel encontramos a cidade começando o dia, garotada de uniforme de escola, gente com seus produtos para vender.  E vamos ao café da manhã que tem mais visitas para fazer.

C 9 Kha em Angkor vat

Com Kha, de manhã cedo em Angkor Wat.  Um guia que honrou seu povo.

Angkor está na bandeira do Camboja, e por mais antiga que seja sua história, o atual país só é autônomo recentemente desde 1998.

Depois do auge do Império Khmer, muitas invasões e outros povos dominaram a região.  Em 1863 chegaram os franceses, que costumavam manter os governantes locais mesmo sem função de comando.  Ali estiveram durante a Segunda Guerra e saíram definitivamente em 1953.  Foi a época da Guerra da Indochina e a ela sucedeu o regime comunista que culminou no genocídio de Pol Pot (1975 a 1979).  Essa fase chamada de governo do Khmer Vermelho é estimado o extermínio de 25% da população.  Ninguém podia usar óculos, ter problema físico e nem falar qualquer idioma estrangeiro; era executado.  Recém-saído de sua guerra, foi a vez do Vietnam invadir e interferir até 1998.  Foi quando refez-se o Reino do Camboja.

Naquela manhã o primeiro templo foi Banteay Srei, considerado obra prima da arte clássica Khmer.  Muitos países mantinham restauradores trabalhando na recuperação dos monumentos Khmer, usando técnicas diversas.  Há placas explicando um pouco dos trabalhos.  Havia desde chineses a italianos, passando por israelenses e mexicanos.

C 10 Banteay Srei Monte Meru

A forma de Banteay Srei é considerada a melhor representação do Monte Meru.

Foi ali em Banteay Srei que tivemos uma aulinha de restauração.  Sabe o que é anastilose?  É uma das técnicas de restauração e que está sendo usada ali.  Primeiro tudo é documentado, depois identificado, desmontado e reconstruído.  Se faltarem partes, pode ser usado material moderno.

C 10 Banteay Srei detalhe

Detalhe dos relevos de Banteay Srei.

Depois veio Ta Phrom, talvez a segunda imagem mais conhecida com seus templos meio cobertos, meio destruídos pela vegetação tropical de raízes enormes sustentando grandes árvores.

Acho que este lugar me impressionou mais do que Angkor Wat.

É meio sombrio, mas demonstra força. Um lugar onde blocos de pedras com esculturas e árvores imensas disputam o poder.

Em algumas partes de Ta Phrom a vegetação foi removida, deixando ver entalhes e esculturas.  De um modo geral as maiores árvores foram deixadas e dizem que removê-las pode causar danos irreparáveis.

Não sei explicar, encanto é assim. É para sentir e desfrutar.  Ali foi o cenário que me encantou.  Quando depois revi o filme de Lara Croft – Tomb Raider, tudo tinha um novo significado.  Eu tinha visitado a ficção.

C 11 Ta Phrom

Sinta-se pequeno como eu junto das ruínas e das raízes de Ta Phrom.

Em quase todos os caminhos de acesso aos monumentos e templos havia música tocada e cantada por pessoas que tinham sofrido lesões graves por conta do tempo da ditadura ou acidentes com minas terrestres.  Fazia algum tempo que o Estado lhes dava essa preparação e algum apoio financeiro para se manterem.  Era muito triste, mas dava um certo conforto saber que não estavam abandonados à sua própria desventura e dificuldade.  Sempre alguém lhes dava algum dinheiro.

C 12 Saída Ta Phrom

Grupo de músicos e cantores na saída de Ta Phrom.  Todos são lesionados por minas terrestres e recebem amparo oficial.

No horário da parada para almoço, Marilza e eu marcamos um tuc-tuc para dar uma volta pela cidade, conhecer o mercado, ver o dia a dia das pessoas.  Saímos depois de uma chuva forte, que deixava o ar mais úmido e a sensação de abafamento mais intensa.

Depois da pausa, pela tarde houve visita a Phrea Khan, a fonte Neak Pean e Banteay Samre. O guia sempre nos comentava nestas visitas que havia ainda muitos sítios arqueológicos a serem explorados mas que antes havia o trabalho de equipes internacionais fazendo a busca e desarme das milhares de minas terrestres que ainda causavam eventuais mortes pelo país.

C 13 Phrea Khan

Phrea Khan também foi construído pelo rei Javayarman II e foi um dos grandes monastérios budistas em sua época.  Foi dedicado a seu pai.

Nessa tarde Marilza e eu tivemos algum trabalho em definir o horário da visita do último dia.  Nossas duas companheiras queriam dormir na manhã seguinte, fazer o passeio à tarde e seguir para o aeroporto no fim do dia. Acontece que o nosso voo saía no meio do dia.  Ganhamos a disputa de horário graças à nossa disposição de ter acordado cedo para ver o sol nascer.

O jantar de despedida foi num restaurante local bem moderno, com música e danças regionais.  Aquelas mãos das dançarinas parecem não ter ossos, tão maleáveis e delicadas.

Nosso último compromisso cambojano era navegar pela cidade flutuante de Chong Khneas na lagoa de Tonle Sap, a maior do Camboja e uma das maiores da Ásia.

O Tomle Sap alimenta e é alimentado pelo rio Mekong. O movimento de entrada ou saída de água depende da época das chuvas de Monções.  Por isso as casas precisam flutuar, de acordo com o nível da água e correnteza.

C 15 Chong Kneas geral

Um pedacinho do grande lago Tomle Sap.

Vilas como essa são comuns nas áreas alagadas, as construções preparadas para subir e descer conforme o nível das águas. Ali tem mercado, templo budista, igreja católica, quadra de esportes, residências.

C 14 Chong Kneas

Família com crianças, igreja, cachorro.  Tudo é Chong Khneas.

Minha veia de professora se emocionou quando vi alunos escrevendo num quadro dentro de uma escola flutuante. Diferentemente do Laos, a educação no Camboja é pública, gratuita e obrigatória.

C 15 Chong Kneas escola

O aluno em sua escola flutuante.

Não foi um passeio longo, mas foi significativo, mais uma vez mostrando a tradição e a força para viver daquele povo.

Deixamos com Kha as roupas que nos restavam, que seriam entregues a uma instituição beneficente.  Saímos do Camboja apaixonadas por lugar e povo, depois de dias surpreendentes.  Tudo ali tem a marca da superação e de um alto astral inabalável.

Agora estávamos de volta à Tailândia.  Tínhamos uma última noite em Bangkok para encerrar uma viagem impressionante.

O final da tarde foi para dar uma olhada no trem suspenso da cidade, visitando um pouco da sua parte moderna.  Na volta ao hotel resolvi ficar numa das salas de massagem nos pés.  Uma de nossas companheiras perdia os passeios para ir às casas de massagem e sempre elogiava, contando que geralmente eram pessoas cegas.  Ali não eram cegos.  Preços baratíssimos.  Marilza preferiu seguir para o hotel e arrumar mala.

Nunca pude imaginar que fosse tão relaxante.  A massagem começa nos pés, parece que eles vão se desmanchar.  Depois relaxa as pernas e finaliza na coluna cervical.  Bem que tentei convencer o massagista, pequeno e magro, a se esconder na minha mala e vir comigo para o Rio de Janeiro.  Eles riram muito.

Na rua encontrei Marilza com cara assustada.  A massagem nos pés durou mais de uma hora.  Ela achou que tinha acontecido alguma coisa e estava voltando à loja para me procurar.

Aproveitamos a noite para comprar nas lojas perto do hotel aquilo que já tínhamos visto.  E fomos comer no mesmo restaurante com jardim onde sabíamos que a comida era boa, barata, saudável e sem pimentas.

T 111 Av Silom

Monumento aos elefantes na avenida Silom, na despedida de Bangkok e da Indochina.

Depois foi só o voo até Frankfurt com a conexão para o Rio de Janeiro, o que acaba com o relaxamento de qualquer massagem.  E já dava vontade de voltar ao Laos e Camboja.

Se precisasse definir cada país por uma palavra seria Agitação para o Vietnam, Tranquilidade para o Laos e Força para o Camboja.  Tailândia já era reprise, não vale a buscar definições.  Tirei muitas fotos e para escrever agora foi gratificante poder recordar.

2006 (janeiro) – Lagos e torres chilenos

Fazia mais de um ano que não viajava.  Pela primeira vez minha mãe ia ficar com uma acompanhante.  Procurei um lugar mais ou menos perto, o acesso nem era tão fácil assim.  Por poucos dias, para irmos nos acostumando.

Ω  O roteiro: Um passeio até Torres del Paine, pacote fechado do hotel Explora.  E uns dias em Santiago do Chile, que é sempre bom.

Tudo começava chegando em Santiago, onde precisava passar uma noite e seguir em outro voo para Punta Arenas no dia seguinte.

Fiquei hospedada no bairro de Providência.  Fui caminhando até o teleférico para subir o Cerro San Cristóbal.  Aproveitei a tarde de muito sol, conheci a piscina pública, fui aos mirantes e desci pelo outro lado, no plano inclinado até o bairro de Bela Vista.

Minha saída para o aeroporto era muito cedo, tomei um café da manhã improvisado e me levaram para o aeroporto.  O voo terminava em Punta Arenas.  Daí, em transporte do Hotel Explora Salto Chico, mais conhecido como Explora Patagônia, os visitantes seriam levados até dentro do Parque Nacional Torres del Paine para hospedagem.

É um programa fechado.  Todos entram no mesmo dia e saem no mesmo dia.  Não tem entra e sai diário de hóspedes.  O preço varia de acordo com o tipo de alojamento e quantos pernoites de hospedagem.  As opções eram de 3, 4 ou sete noites.  Eu tinha o de 4 pernoites.  Todos os programas, refeições com bebidas e recursos do hotel estão incluídos.

Durante a estadia, são oferecidas opções diárias de expedições acompanhadas pela equipe de guias do hotel, de acordo com as condições climáticas no momento, com saídas em van, cavalgadas ou caminhadas de diversas dificuldades.

O desembarque em Punta Arenas foi rápido e logo estavam diversas caminhonetes a caminho do Hotel Explora.  Uma parada para lanche no ponto de descanso da própria empresa e vamos seguindo.  A chegada foi no fim da tarde, com tempo para uma palestra sobre a temporada e disponibilidade dos serviços antes do jantar.

Éramos apenas 4 brasileiros, reunidos numa mesa.  O restaurante fica estrategicamente colocado quase em cima do Salto Chico, que dá nome ao hotel.  Meu quarto tinha vista para a cordilheira del Paine.  Acordar com aquele visual era para começar bem qualquer dia.

Para o primeiro dia escolhi uma caminhada longa, de dia inteiro, que acabei não fazendo.  Eu ainda usava lentes de contato, apesar de não estar com elas naquele frio e vento gelado.  Quando a caminhada começou, os olhos se ressentiram, comecei a lacrimejar demais, comecei a fungar o nariz, passei a respirar pela boca.  Perdi o ritmo e tive que parar.  Não conseguia abrir os olhos e se abrisse apenas lacrimejavam e eu ficava cada vez mais nervosa.

1 Lago Pehoe e Cuernos del Paine

No lago Pehoe, voltando da caminhada frustrada.  Ao fundo os Cuernos del Paine.

O guia conseguiu avisar ao barco que eu ia voltar.  Eles me esperaram e retornei ao hotel.  Fiquei sem fazer nada naquela manhã.  Os olhos ficaram bem vermelhos mas um pouco de colírio resolveu.  Por sorte ainda havia vagas para uma das caminhadas da tarde, que foi muito boa, mais curta e com menos vento.  O destino era o mirante do lago Nordenskjöld, nome do explorados sueco que o descobriu no início do século XX.

A paisagem é o ponto de referência.  Um detalhe que chamou a atenção de todos foi a forma arredondada das touceiras de vegetação, uma metade de esfera quase perfeita.   A explicação é de que se trata de uma defesa contra o vento forte dali.  A trilha por onde se caminha é um traçado suave, determinado pelo deslocamento em fila dos guanacos.

2 Nordenskjöld

Foto completa: ao fundo o lago Nordenskjöld, a trilha suave dos guanacos e a vegetação em touceira redondas.

No segundo dia estávamos somente os quatro brasileiros e o guia para caminhar até o lago Sarmiento.  Nenhum de nós tinha pressa, parávamos para olhar, tirávamos fotos, comíamos um biscoito.  O guia ficava angustiado, querendo logo chegar ao destino.  Percebendo a pressa dele, acabamos por conversar e avisar que estávamos ali para desfrutar, sem correr.  O argumento dele é que tínhamos almoço de churrasco de carneiro para ir.  Combinamos parar menos e correr menos.

No caminho até o almoço, uma parada perto dos guanacos em liberdade, alguns ainda bem jovens.  E outra para as raposas, quase perfeitamente camufladas na vegetação.

4 Guanacos na volta de Sarmiento

Enfim encontramos guanacos.

Chegamos bem a tempo para o churrasco, muito bom, feito à maneira antiga, na fogueira.  Depois havia passeio a cavalo, o que de nenhum jeito é um programa de minha escolha.  Assim mesmo Perdi o ritmo e tive que parar.  Não conseguia abrir os olhos e se abrisse apenas lacrimejavam e eu ficava cada vez mais nervosa.

5 Cavalgada e torres

Meu heroico passeio a cavalo, com as Torres del Paine acompanhando.

Pedi um cavalo que fosse bem tranquilo, quase idiota, e recebi um chamado Diablo.  O nome não recomendava, mas ele era dócil e bonzinho.  Claro que fiz o passeio mais curto.  Sempre com os picos que dão nome ao parque nos olhando.

Para o último dia, pela manhã fizemos um passeio até o lago Grey, com as águas de degelo do glaciar de mesmo nome.  A guia comentou que era um dos lugares mais ventosos do parque, mas nossa caminhada teria ventos de apenas uns 60 quilômetros por hora.  Acho que nem foi tanto assim.  O lugar é um delírio de bonito e tranquilo.  Preferi não fazer o final da caminhada e ficar deitada no chão ouvindo o barulho da água e os estalos dos blocos de gelo.

6 lago grey

O cenário mais bonito foi o lago Grey.

Para a parte da tarde, ofereceram outro passeio a cavalo.  Eu e o menino brasileiro fomos.  Mas os cavalos não eram gentis como os da fazenda e desistimos.  Preferimos ir para a piscina.

A piscina era coberta e aquecida, mas ficava longe do prédio principal.  Tinha que ir todo agasalhado, trocar de roupa lá, tornar a trocar e as agasalhar para voltar.  A passarela nos dava, como sempre, lindas paisagens.  Complicada foi a volta, já com aquele vento de fim de tarde e fazendo um frio danado.

3 hotel Explora

Hotel Explora Salto Chico.

Achamos estranho não haver ninguém com os cavalos nem na piscina.  Só mais tarde descobrimos que muita gente tinha usado a última tarde para dormir e descansar, preparando-se para as horas de estrada e avião do dia seguinte.

A hospedagem no Hotel Explora foi ótima. Salões envidraçados para não perder nem um minuto de paisagem, alojamento de primeira, bons passeios, comida de primeira, vinhos chilenos acompanhando.  Para cada quarto deram uma coleção de livros com a história e poesias sobre a região.  Havia em vários idiomas, eu ganhei em espanhol.  Não é um programa para quem não gosta de andar, para mim já era um pouco demais.  Não há visitas em jipes, mesmo que haja acesso; tudo é feito caminhando.  Mas valeu a pena.

Os comboios de transporte saíam em vários horários, de acordo com os voos dos hóspedes.  Paramos na mesma estância de chegada para um lanche.

No caminho pedi para fazer uma parada na beira de um lago onde havia cisnes de pescoço preto.  Fui abrir a porta para fotografar e quase que o vento leva a porta e eu, um susto para mim e para o motorista.  Fiquei bem sem graça pelo vexame.

No avião, fiquei numa janela e deu para ver os campos de gelo.  São um espetáculo.

Voltei ao mesmo hotel de Santiago.  E tinha um dia livre para rever aquela cidade que gosto bastante.

Fui até o mercado, onde já havia movimento para o almoço, mas não quis comer tão cedo, apesar da fama e do cheirinho delicioso.  Revi a Catedral, as ruas de pedestres no centro, fiz algumas compras, entrei no Palácio de La Moneda.  Aproveitei o fim da tarde no bairro Providencia.

7 interior La Moneda

Pátio no interior do Palácio de la Moneda.

O voo de retorno também era muito cedo e foi outro café da manhã improvisado.  Ainda estava escuro quando cheguei no aeroporto.  Eu não gosto destes horários, mas era o que existia na época.

De todo o passeio, fiquei com pena de não ter conhecido Punta Arenas, onde talvez pudesse haver um giro rápido na chegada ou na saída, dependendo do horário.  Puerto Natales é bem mais perto do hotel, mas não há opção de transporte nem oferta de visita à cidade, que de passagem pareceu bem simpática.

Encontrei tudo bem na volta, minha mãe sem problemas e o cachorro tranquilo.

 

 

 

2005 – O ano das reorganizações

A casa agora tinha só três habitantes.

Éramos eu, minha mãe e um cachorro.

A vida não parou, não para nunca.

Eu queria continuar viajando, mas precisava alguém que ficasse com eles.  Minha mãe procurou daqui e dali e encontrou.  Não queria me afastar por muito tempo, não sabia como as coisas iam ficar.  Mas queria voltar ao mundo.

Já fazia mais de um ano quando pude voltar às estradas e salas de embarque.

Nesse tempo fiz muitos planos.  Sonhei mil roteiros.

Queria conhecer novas gentes, novas paisagens.

Mas precisava recomeçar com cuidado.  Precisava primeiro um teste rápido.  Se tudo desse certo, ia para mais longe.

Queria que desse certo.