Precisava acabar com o pedaço das férias que me sobrava. Arranjei uma composição para conhecer os Lençóis Maranhenses e depois ficar uns dias em São Luiz.
# O roteiro: Uma semana. Os programas em Lençóis Maranhenses eram curtos por causa da hospedagem reduzida, e então o jeito era cada turista passar pouco tempo por lá. De São Luiz a Barreirinhas, cidade de acesso aos Lençóis, ainda não havia estrada, só pequenos aviões, bem pequenos. Depois ia ficar em São Luiz e fazer passeios ali por perto. Queria muito ir a Alcântara.
Barreirinhas é uma cidade muito pequena. Boa parte da hospedagem fica por conta de um cantinho numa casa para passar a noite. Só havia uma pousada, e era quase impossível conseguir vaga nela se não fosse em um pacote. E para chegar a Barreirinhas, tinha que passar por São Luiz do Maranhão.
Acho domingos em geral muito chatos. Chegar domingo numa cidade de praias onde seu hotel fica longe delas é desanimador. Fiquei muito chateada porque constava ser um hotel junto do mar; na realidade era de frente para o manguezal. O centro velho ficava longe e no hotel o nível de desinformação era grave. Perto do hotel não havia nada. Fui para um shopping, pelo menos tinha certeza de encontrar movimento.
Saía para os Lençóis logo na segunda-feira. Mala deixada no hotel, apenas uma mochila para os dias a seguir. O motorista veio me pegar no hotel na hora certinha e fomos para um aeroporto pequeno onde deveria embarcar para Barreirinhas, porta de entrada do Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses.
Cadê o avião? Não estava. Só um vigia estava lá, não sabia informar nada. Não tinha telefone que se pudesse usar. Procura um telefone público, liga para a agência, que manda procurar em um aeroporto de treinamento de pilotos. Também não havia nenhum voo programado. Telefona para a agência de novo, manda voltar ao primeiro aeroporto. Continuava fechado, só passarinhos na pista. Eu ansiosa, o motorista chateado porque nada dava certo, dirigindo depressa demais para a qualidade do asfalto daquelas estradinhas. Ele teve um palpite e sem perder tempo de avisar na agência, partiu para um acesso secundário do aeroporto principal. Acertou na mosca e na hora exata.
Estava lá o aviãozinho de cinco lugares. Já tinha até aparecido um candidato para o meu lugar, só esperando o embarque dos outros quatro. Não interessava saber quem tinha feito a besteira, eu queria era embarcar. Dei uma gratificação ao motorista, olhei com falsa tristeza para o quase ocupante do meu assento e começamos o voo.
O tempo todo é uma visão incrível, começando pelos manguezais junto de São Luiz, depois a vegetação de final da mata amazônica e de repente lá estão eles, os Lençóis Maranhenses. Quem não os vir do alto não tem a verdadeira dimensão deles, em tamanho e beleza. É simplesmente espetacular. E nem era época das lagoas muito cheias.
A areia se alternando com as lagoas parece mesmo o tecido ondulado de um lençol largado. |
A Pousada do Buriti era deliciosa, simples mas muito bem cuidada, bastante nova e jeitosa. Na portaria, um rapazinho com problemas de deficiência neurológica, de uma alegria contagiante. Naquele dia estava especialmente feliz porque tinham avisado que na semana seguinte ele iria fazer um passeio para ver a obra da estrada que chegaria a Barreirinhas e iam levá-lo até onde já estava o asfalto. Não me lembro do nome dele, uma pena. Ele sabia tudo do hotel, operava fax e conhecia o cardápio da noite de cor.
O apartamento era um charme, com uma varandinha interna envidraçada e um arbusto plantado. Na manhã seguinte iria descobrir que os passarinhos brincavam por ali.
Chegou o responsável pela minha visita da tarde, e veio com uma história de que eu viajava sozinha, que não podia fazer o passeio num jipe só para mim porque seria prejuízo. Resposta imediata, que me ponham em outro jipe porque havia outros visitantes. Seu argumento foi de que eram de outra agência, não podiam ser misturados. Ele propunha que eu pagasse um valor extra. Aí ficou clara a artimanha. Foi a hora de telefonar para minha agente de viagens no Rio de Janeiro e esclarecer as coisas.
Quem viaja sozinho sabe que paga mais. Mas isso é cobrado quando se contrata o serviço. Se não cobrou, assume o risco. Algum tempo depois retorna minha agente confirmando que o serviço estava pago, nada devia ser cobrado a mais, era o responsável querendo bancar o esperto.
Claro que ele não gostou. O passeio era marcado para o final da tarde, por causa do calor, do reflexo do sol na areia e a temperatura que ela atingia. Na hora marcada lá estava um jipe e um motorista para mim. Saíram todos os viajantes na mesma hora, todos fizeram as mesmas paradas e as mesmas caminhadas.
Há muito reflexo de luz na areia e na água, as fotos não ficam boas. |
O passeio faz jus ao que se vê lá de cima. Primeiro tem que cruzar o rio numa balsa. O jipe fica na base de uma das dunas. Dali em diante serão longas subidas e descidas de dunas, lá em baixo lagoas de diversas cores, com água doce acumulada das chuvas e onde nadam vários peixinhos. Algumas são rodeadas de cajueiros que crescem ou se deitam de acordo com o movimento das dunas. Pode-se mergulhar, nadar ou simplesmente caminhar, dependendo da profundidade de cada uma. No fim, pernas cansadas e cara satisfeita.
Para o dia seguinte foi proposto um passeio descendo de barco o rio Preguiças até sua foz. O interessante é que neste opcional os clientes de diversas agências podiam se misturar.
São feitas algumas paradas ao longo do rio. Áreas que eram de manguezais já foram invadidos pelas dunas. Aquele aspecto de deserto dá mais sede ainda. O sol queima e o reflexo na areia muito clara incomoda os olhos. E o vento chicoteia os grãos nas suas pernas.
Descendo o rio Preguiças, cercado de mata e manguezais, mas a areia já invade trechos da margem. |
A foz do rio é conhecida como Caburé. Ali havia um restaurante e estavam construindo uma pousada. O mar era bastante perigoso, e sem qualquer recurso de salvamento por perto, o melhor era andar um pouquinho e tomar banho de rio.
Podia ser feito um voo de ultraleve, o que não foi muito animador quando vi o primeiro deles subindo. Já tinha visto os Lençóis do pequeno avião, iria ver outra vez na volta. Não estava com ânimo de correr riscos.
O almoço seria ali mesmo no Caburé. Perguntei o que tinham e a resposta foi pequena e desanimadora – peixe frito. Eu não sou chegada a peixes, fritos ainda pior. O cheiro e as espinhas não me agradam. Perguntei por alguma salada, batata frita, arroz. Não tinham nada, só peixe frito. E frutas para fazer suco. Almocei um jarro de vitamina de todas as frutas que misturaram. E estava gostoso. Melhor ainda, levei jarro e copo para ir bebendo mergulhada na beira do rio.
Na volta o barco parou no povoado de Maracatu. São os meninos que levam os visitantes até o farol, pintadinho de branco da sua restauração recente. A garotada já estava de férias, solta como não são mais as crianças de cidades.
Subimos o farol com nosso pequeno guia e sua primeira informação foi mostrar orgulhoso onde era a escola dele. A tarde de sol, o ar limpo, a vista ia longe, até o mar.
De volta à pousada, foi só tomar banho e correr para pedir um bom jantar.
Do alto do farol do povoado de Maracatu a vista das casas, da curva do rio Preguiças e o mar ao fundo. |
Passeando pelas lojas da vila, quase tudo era derivado do buriti, palmeira abundante na região. O doce não é tão açucarado e fica bem saboroso. Tem muito enfeite de palha, toalhas para mesa e bolsas. Sempre tudo do buriti.
Passarinhada cantando com toda força, acordei cedo. Fui para a beira do rio Preguiças, no alto de uma duna. Na mesma curva do rio, uma outra duna tinha invadido e encoberto um posto de combustível.
No alto da duna à beira do rio Preguiças. Sol nascendo às 5:20 da manhã. |
Era o dia de voltar a São Luiz no mesmo aviãozinho, ver de novo aquela imensidão de areia com lagoas. É uma paisagem que não cansa, parece dançar.
Há diferentes formas das dunas se arrumarem com o vento, algumas parecem cordões. |
O retorno foi para o mesmo hotel no meio do nada, de frente para o manguezal.
Fui de ônibus para o centro da cidade, mesmo antes do passeio incluído para o dia seguinte. Aproveitei para comprar mais umas coisinhas de comer que só existem por lá. E completei jantando num dos lugares do centro histórico, admirando os azulejos.
No dia seguinte tinha o passeio pela cidade. Começou pela praia do Calhau, onde vi de longe o hotel onde estive muitos anos antes e agora tinha outro nome. Depois foi o centro velho, e o destaque é mesmo o casario revestido de azulejos, muitos precisando de cuidados. Tem também as escadarias e as ladeiras, algumas bem difíceis de subir.
Nem pensei em voltar para a minha janela de frente para o mangue. Nada contra os manguezais, são importantes demais. O que é desagradável é ficar de frente para ele, afinal aquela lama preta ora encoberta pela água ora aparente não é uma vista bonita. E quando bate o sol forte, vem o cheiro característico.
Rua Portugal, perto do Mercado das Tulhas. |
Fiquei passeando pela cidade, descobri que na tarde de sábado haveria apresentação de balé folclórico no teatro Arthur Azevedo. Baratinho, oportunidade de conhecer o teatro, ver um pouco do folclore, jantar por ali mesmo.
Os famosos azulejos portugueses, orgulho da cidade, nem sempre estavam bem recuperados. Muitos edifícios abandonados, bem deteriorados e com muitas falhas na decoração da fachada. Os já restaurados são fantásticos.
Fonte do Ribeirão. Lenda urbana antiga, dizem que pela galeria de abastecimento de água, as pessoas podiam fugir escondidas. |
Neste dia conheci o Guaraná Jesus. O gosto é de guaraná, o líquido é cor de rosa. Passei num mercado e comprei umas latinhas para trazer.
Fui caminhando, cheguei até a Fonte das Pedras, responsável pelo abastecimento de água aos portugueses durante a invasão francesa no Maranhão. E também a Fonte do Ribeirão, mais central, perto do teatro.
Muitas vezes lembrei de velhas aulas de História no colégio contando da fundação de São Luiz pelos franceses em 1618. Eles insistiam em ter uma colônia pela América do Sul. Ainda existem fontes que marcam aqueles anos de luta entre francesas e portugueses. Acabaram ficando com a Guiana. Nem em São Luiz nem na costa do Rio de Janeiro.
Nem pergunte pelo nome oficial do Quebra Bunda, antiga ladeira, transformada em escadaria no centro histórico de São Luiz. Acho que ninguém sabe. |
Passear por São Luiz é também descobrir que de ponte a hospital, de biblioteca a pracinha, quase tudo tem o nome de alguém, vivo ou morto, da família Sarney.
Cansada, carregando latas de guaraná, resolvi comer algo cedo e pegar meu ônibus para o hotel. O motorista me reconheceu da véspera (incrível!) e foi logo avisando que ia parar na esquina para ficar mais perto e não me preocupasse com o peso. Só restou sorrir e agradecer muito.
Esperava ansiosa pela visita a Alcântara, lugar complicado de chegar e sair por causa da precariedade do cais e as grandes variações de maré naquele litoral. Minha mãe detestou o lugar, o que para mim é um bom sinal, já que gostamos de coisas bem opostas.
E foi isso que aconteceu. Achei Alcântara interessante, com sua história bem triste e fascinante.
O cais é um terror, idosos e crianças têm muita dificuldade e se consolavam com a promessa longínqua de que iam construir um cais flutuante.
A subida até a parte principal da cidade se chama Ladeira do Jacaré, e o desenho em pedras brancas e pretas dizem que é um símbolo da influência local da Maçonaria antiga. E dali em diante arquitetura e história vão juntas. São Luiz, numa ilha, não era a cidade mais importante do estado durante a colônia e o império. As famílias ricas, os maiores comerciantes, viviam em Alcântara, e eram seus filhos que saiam de lá para estudar no sul.
O lado rico de Alcântara: casas de dois andares. Os solares eram apenas residências; os sobrados eram residência no segundo andar e negócio da família no térreo. |
Durante o tempo do Segundo Império correu a notícia de que D. Pedro II iria visitar a comarca ainda em data indefinida. Cada um dos dois rivais, os barões de Mearim e de Pindaré, mandou construir um palacete para hospedar o imperador. Ele nunca foi lá. Os palacetes, como a cidade, entraram em decadência. Deles só restam pedaços de paredes com vãos de janelas.
O declínio foi acentuado com o fim da escravidão e do império. As famílias ricas abandonaram as propriedades e – como os palacetes – algumas ruíram.
Alguns meses depois estava de perna quebrada (isso já é outra viagem) e li “A Noite sobre Alcântara”, um dos livros de Josué Montelo sobre o Maranhão. Lia e acompanhava as cenas me deslocando pelo mapa que tinha trazido da cidade. Só que no livro acontece um incêndio. O resto é mesmo a vida e história da cidade.
Como havia muito turismo, havia muitas e gostosas opções para almoçar. E tinha que ser rápido para ainda conhecer o pelourinho de pedra, a Praça da Matriz e a Igreja do Carmo.
Casas de um piso, das famílias mais pobres. |
As partes da cidade onde viviam as pessoas mais pobres, que não puderam simplesmente abandonar a cidade, ficou mais bem conservada, porque os imóveis permaneceram ocupados e com manutenção. Em todas as ruas já foi feita a passagem de cabos e fios subterrâneos, e isso ajuda a dar um aspecto mais antigo. As luminárias de rua imitam lampiões.
De alguns solares ricos só restam paredes e a vista distante para São Luiz. |
Algum tempo depois a cidade sofreu um baque, que atingiu todo o país. Um acidente no Centro de Lançamentos de Alcântara, a base militar de onde eram lançados foguetes com satélites. Uma explosão destruiu quase tudo e matou uma geração de cientistas.
O desembarque em São Luiz também foi complicado por causa da variação da maré. Mas não importava, eu tinha feito um bom passeio a Alcântara.
Arranjei um tour pela manhã até a colônia de pesca da praia da Raposa e São José de Ribamar. Muitos maranhenses se chamam José de Ribamar, o nome do santo de maior devoção por aqueles lados. O passeio em si não teve nada de especial, nem mesmo a igreja do santo tem qualquer atrativo especial. É a crença forte e gratidão das pessoas que fazem ser especial.
Naquela tarde de sábado tinha a apresentação de folclore no teatro. Estava quase vazio. O prédio estava cheirando a novo, recém-restaurado e reinaugurado com pompas pela governadora. De repente faltou luz. Escuro, quente e sem perspectiva. Foi uma espera razoável. O espetáculo começou, e eram números de dança folclórica modernizados.
Quando terminou, desci para a parte mais agitada do centro velho, onde já tinha estado e conhecia os lugares. Fui buscar um local para jantar, pois nem queria voltar tarde porque sabia que no entorno do hotel haveria um deserto.
A única foto, manchada, da Igreja de São José de Ribamar |
Guardei boas imagens do centro antigo de São Luiz, e merece ser sempre e mais cuidado. Enquanto estive na cidade não pude ir ao Centro Cultural, fechado e sendo preparado para receber a exposição dos 500 anos do Descobrimento do Brasil.
Um pedacinho da manhã que restava antes do embarque fui para a piscina do hotel. Começou a chover. Então nada mais a fazer a não ser preparar a bagagem e voltar carregando doces de buriti e latinhas de Guaraná Jesus.
Os Lençóis Maranhenses entraram na lista das visitas que deveriam ser consideradas obrigatórias para entender e valorizar as belezas do Brasil, junto com o Pantanal e a Amazônia. Também gostei muito de Alcântara e sua história; o cais flutuante foi instalado em 2004.